A pressão está toda sobre a EMA, a agência responsável pela avaliação científica dos pedidos de autorização de introdução de medicamentos na União Europeia, que em Julho rejeitou o Leqembi, produzido pela farmacêutica Eisai, por considerar que os riscos para os doentes são maiores do que os benefícios.
A decisão dividiu a comunidade médica e científica e nem todas as autoridades nacionais do medicamento concordam com o chumbo do Leqembi, que tem a seu favor um argumento forte: não há mais nada no mercado para tratar a doença de Alzheimer, nem imunoterapias, nem antibióticos, nem vacinas.
O Leqembi, que retarda o agravamento da doença em fase inicial em 27%, está aprovado em países como os Estados Unidos - onde já existe o Kisunla, que reduz a progressão da doença de Alzheimer em 35% -, o Japão, a China, os Emirados Árabes Unidos, Israel, Coreia do Sul e, mais recentemente, também no Reino Unido, por exemplo.
A doença de Alzheimer é a principal causa de demência (75%) e afeta cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo. O envelhecimento da população ameaça triplicar estes números até 2050. Em Portugal a prevalência da doença é superior à média europeia e estima-se que perto de 195 mil pessoas sofram de Alzheimer.
As associações de doentes têm recebido a chegada do Leqembi com enorme esperança, apesar de a maioria dos pacientes não poder beneficiar dele, uma vez que apenas atua em casos precoces da doença.
Recentemente, quatro prestigiados investigadores internacionais, que estudam esta doença há décadas, enviaram uma carta aberta ao diário espanhol "El País" para pedir que a EMA reconsiderasse a sua decisão, que "nega aos doentes e aos seus médicos o acesso a um tratamento potencialmente transformador".
Bart de Strooper, co-fundador do Instituto de Investigação da Demência do Reino Unido, Henrik Zetterberg, da Universidade de Gotemburgo (Suécia), Christian Haas, da Universidade de Munique (Alemanha), e John Hardy, da University College London (Reino Unido), escrevem que o não da EMA "estrangula" a investigação neste domínio dentro da União Europeia, que se posiciona "como seguidora, em vez de líder".
O facto de o medicamento estar aprovado noutros países e não existir na União Europeia faz com que existam doentes de Alzheimer de primeira, os ricos que podem viajar para os Estados Unidos ou outro país onde o tratamento está disponível, e os de segunda, o resto da população.
Sobre este tema, o Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, garantiu ao SAPO24 que "não houve, até ao momento, nenhum pedido de autorização de utilização excecional para este medicamento".
Lamentavelmente, a associação Alzheimer Portugal não respondeu a qualquer das nossas perguntas.
Medicamento custa 24 mil euros por ano nos Estados Unidos
Nos Estados Unidos da América, o Leqembi custa 26.500 dólares por ano, cerca de 24.000 euros. A FDA - Food and Drug Administration, o regulador norte-americano, aprovou o medicamento em Janeiro de 2023, mas a sua chegada aos doentes está a ser lenta devido a dúvidas sobre a sua eficácia, custo e efeitos secundários. No entanto, estudos mostram que o uso continuado do medicamento aumenta a sua eficácia, reduzindo a progressão da doença em 31% passados três anos, noticia a Reuters.
Em teoria, a implementação de Leqembi na União Europeia custaria 133 mil milhões de euros, metade de todas as despesas farmacêuticas da UE, revela um estudo publicado no verão. Na prática, este número seria muito inferior, uma vez que muitos doentes seriam excluídos por contra-indicações - como tomar anticoagulantes ou ter perfil genético APOE4.
Estes novos medicamentos requerem um teste genético, uma punção lombar para determinar a quantidade de amiloide no cérebro e vários exames para excluir efeitos secundários. Além disso, devem ser administrados preventivamente para o resto da vida. A dose atual é de uma infusão intravenosa (gota-a-gota), que deve ser administrada no hospital, de duas em duas semanas. A grande esperança é que o diagnóstico precoce avance, sobretudo com os exames de sangue para a proteína tau.
O princípio ativo do Leqembi é o lacanemab, um anticorpo monoclonal (um tipo de proteína) que se liga a uma substância chamada beta-amiloide, que forma placas no cérebro das pessoas com doença de Alzheimer. Ao ligar-se, reduz as placas amilóides e retarda o avanço da doença.
O principal ensaio clínico - internacional, randomizado, duplo-cego e controlado por placebo - envolveu cerca de 1.800 pacientes por um período de 18 meses, com o objetivo de avaliar a eficácia e segurança do lecanemab, a substância ativa do Leqembi. O chumbo da EMA fundamentou-se em alguns efeitos colaterais adversos, cerca de 13% desenvolveram edema cerebral e 17% revelaram risco de hemorragia cerebral. Por causa desses efeitos, cerca de 7% tiveram de abandonar o tratamento.
Além do Leqembi, os Estado Unidos comercializam também o Kisunla, fabricado pela Eli Lilly, aprovado pela FDA no início de Julho deste ano, depois de o ter rejeitado em 2023. A substância ativa é o donanemab e o princípio do fármaco é o mesmo do que o do Leqembi. O preço ronda os 630 euros o frasco, quase 30 mil euros para um tratamento de um ano. Três pessoas morreram enquanto tomavam o medicamento após desenvolverem ARIA.
O pedido de autorização do Kisunla na União Europeia está em análise desde Agosto de 2023. Normalmente, o processo de aprovação da EMA demora até 210 dias, mas, neste caso, está a demorar mais tempo. Teoricamente, seria possível que o medicamento fosse aprovado ainda este ano, mas considerando o atraso na aprovação do Leqembi, é impossível adivinhar. No melhor cenário, o fármaco será aprovado no final do ano e estará disponível em 2025.
Cada Estado-membro da UE tem o seu próprio processo nacional de lançamento de medicamentos aprovados pela EMA. A média é de 511 dias - a Alemanha é o país mais rápido (133 dias) e a Roménia o mais lento (899 dias). Em Portugal, chega a demorar dois anos.
Porque decide a EMA diferente da FDA e doutro reguladores?
Ao contrário da FDA, a EMA proíbe nos seus painéis cientistas que tenham relações comerciais com empresas farmacêuticas. Mas mesmo aí existem opiniões contraditórias.
Também há investigadores que consideram que devem ser os doentes a decidir, em conjunto informado com o seu médico, se devem ou não tomar um medicamento, tendo em conta todos os riscos.
Um em cada três americanos morre com doença de Alzheimer, ou outra forma de demência, de acordo com a Associação de Alzheimer. A doença mata mais pessoas do que o cancro da próstata e de mama juntos.
Nos Estados Unidos, prevê-se que o número de pessoas com atinja perto de 14 milhões até 2060. Em 2023, cerca de 6,7 milhões de americanos com 65 anos ou mais viviam com a doença. Que, como no resto do mundo, não afeta apenas os pacientes, mas também os milhões de familiares e cuidadores não remunerados.
Esta é a realidade que leva a FDA a ser menos conservadora do que a EMA, que quer ver dados de segurança para um prazo mais alargado dos que o ano e meio do ensaio principal.
"A filosofia do regulador americano centra-se sobretudo na rapidez do acesso a novos fármacos, mais importante que cinto e suspensórios e mais três anos de espera, no caso do Alzheimer com custos humanos e sociais enormes", diz Peter Villax, CEO da Mediceus e Chairman da Bionova Capital. "O ataque precoce à doença, mesmo se pelo meio houver reações adversas graves, é prioritário para a FDA. São opções".
O 'cliente' do Leqembi será sempre, pelo menos por agora, o doente que ainda tem alguma independência para viver sozinho, mas começa a ter pequenos lapsos de memória, como esquecer compromissos ou repetir várias vezes o mesmo discurso. Para os investigadores, ainda, o acompanhamento de doentes prescritos com estas terapias permite ter acesso a dados fundamentais para a ciência e para a medicina, que os Estados Unidos vão ter e a Europa não.
Peter Villax não concorda que a decisão fique do lado do doente. "A escolha tem de ser da autoridade de saúde, o cidadão não tem capacidade de tomar essa decisão, ou por outra, fará sempre a escolha favorável à administração ao doente. A escolha tem de ser feita por peritos", que são quem tem capacidade de avaliar o rácio risco/benefício do medicamento.
Depois, existe também a dimensão económica: um governo vai querer mesmo aprovar um medicamento caríssimo, que vai dar um pequeno benefício a uma pequenas parte dos doentes, ou prefere aproveitar melhor o orçamento do Serviço Nacional de Saúde em terapias para outras doenças com um perfil muito mais favorável?
A aprovação destes e outros medicamentos, no entanto, não significa que os mesmos sejam comparticipados pelo SNS. Por agora, no entanto, para ter acesso ao Leqembi ou ao Kisunla é obrigatório ir ao estrangeiro ou, como aconteceu em fase inicial com o medicamento agora tão falado por causa do caso das gémeas, pedir uma autorização especial ao Infarmed.
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