Após três anos de arrefecimento, a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA) anunciou, no passado dia 8 de junho, que o El Niño está agora em processo de aquecimento. Este fenómeno costuma ter consequências que podem ser drásticas, desde ondas de calor abrasadoras a tempestades fortes, e os efeitos podem durar meses. Alarmante? Para já, é uma possibilidade que 2023 fique registado como o ano mais quente de sempre, mas não uma certeza. Palavra de especialista.
“Apenas uma possibilidade. Acredito num Top10 ou mesmo Top5, como ano mais quente de sempre. Os principais efeitos estão previstos apenas para o final do ano. 2024, com toda a certeza, será mais complicado que 2023. Tudo muda e tudo conta. As alterações climáticas, os gases efeito estufa, a queima de combustíveis fósseis, a poluição por carbono, tudo conta. Se mantivermos os padrões, tudo aponta para que os anos continuem a ser mais quentes, se conseguirmos controlar um pouco esses mesmos padrões, os anos poderão não bater recordes consecutivamente”, começou por dizer ao SAPO24 Jack Beckwith, especialista em Ciência do Sistema Climático, que trabalha em vários institutos e universidades norte-americanas.
Da mesma opinião é Kim Holmén, professor no Instituto de Pesquisa do Ártico, que vê o "enorme crescimento" destes fenómenos ano após ano. "Temos de pensar que se não tivéssemos um fenómeno como El Niña, El Niño seria mais destruidor, tudo porque continuamos sem mudanças sérias. Vejam o que se passa no Ártico, se não houvesse El Niña, todo o resto do mundo iria sofrer mais. Pelos dados, este ano será mais um moderado, o El Niño, mas não podemos pensar assim, temos de pensar sempre nos extremos, trabalhar para evitar catástrofes", referiu.
São muitos os que têm estudado ao longo dos anos estes dois fenómenos, El Niña e El Niño, como Jack Beckwith, que não tem dúvidas do futuro próximo. “Será bastante comum que todo os anos afetados pelo El Niño possam bater recordes de temperatura. A média será uma subida de 1,5 graus por cada ano sempre que se regista este fenómeno, por isso é natural que se quebrem recordes quando tal acontece”, disse o também físico, comentando depois algumas declarações de outros especialistas de que este El Niño possa ser um Super El Niño.
“Por tudo o que tenho estudado e analisado, 2023 não será muito diferente do que aconteceu entre 2018-2019, de intensidade moderada. Os principais efeitos são esperados apenas para o final desde ano, a partir de outubro/novembro. Mais preocupantes serão 2024 e 2025, e talvez mesmo 2026, os problemas aí serão bem maiores, poderemos estar a falar de um aumento de temperaturas bem acima de dois graus, mais que a tal média de 1,5”, referiu o especialista, explicando depois o que pode ser considerado um Super El Niño.
"Será bastante comum que todo os anos afetados pelo El Niño possam bater recordes de temperatura. A média será uma subida de 1,5 graus por cada ano sempre que se regista este fenómeno, por isso é natural que se quebrem recordes quando tal acontece"Jack Beckwith
“Um super El Niño é uma forma muito extrema, que pode fazer com que as águas do Oceano Pacífico aqueçam muito mais que o normal. Falámos sobre as subidas médias de 1,5ºC, neste caso seria o dobro ou mais, para depois ser considerado um fenómeno climático extremo. Se acredito mesmo num super El Niño? Temos de nos basear em dados e factos e a realidade é que um super, por norma, só surge 15 a 20 anos depois do último, isso é o que nos conta a história. E a verdade é que o último ocorreu em 2016. Mas, como também já disse, tudo muda, nada é certo”, referiu o especialista, dando exemplo das consequências do El Niño em Portugal.
“Na Europa as consequências são sempre menores, mas também elas significativas. Na Península Ibérica podemos esperar por um final de verão e outono mais húmidos e também bem mais quentes, algo que também aconteceu com este último fenómeno entre 2016 até 2019”, referiu.
E no meio de tantas incertezas, preocupações, para com o El Niño, há boas notícias? Para Portugal, entre outros, Jack Beckwhit diz que sim. Ou melhor, notícias mais ou menos animadoras.
“Como disse, as consequências serão menores em Portugal, e na Europa, claro que haverão problemas, mas menores. Mas há um aspeto positivo a ter em conta. Os meses, sobretudo os de inverno, serão mais húmidos, haverão mais tempestades e isso poderá ajudar países, como Portugal, que atravessam graves problemas no que a seca diz respeito. Este verão, por exemplo, tudo indica, será também ele mais húmido e com mais chuva do que o anterior. Há sempre o lado menos negativo, mas claro que o El Niño é um problema”, disse.
"Na Europa as consequências são sempre menores, mas também elas significativas. Na Península Ibérica podemos esperar por um final de verão e outono mais húmidos e também bem mais quentes, algo que também aconteceu com este último fenómeno entre 2016 até 2019"
Kim Holmén também não vê os cenários a piorarem este ano na Europa, mas alerta para os próximos anos. "É o começo do El Niño. É a altura de se prevenir, de arranjar formas de diminuir a sua força e potência. Caso não o façamos, então sim, os próximos anos poderão ser desastrosos. Estamos apreensivos no Ártico, mas, como já referi, as pessoas não podem esquecer que tudo o que acontece no Ártico poderá prejudicar o resto do planeta", assinalou por email o também diretor internacional do Instituto Polar norueguês.
Águas mais quentes? Sim, mas só é bom para alguns
Alguns veraneantes já começam a lotar as praias em Portugal e muitos dizem mesmo que as águas estão mais quentes, sendo que o verão só agora começou. Os especialistas confirmam a subida de temperatura no Atlântico, com uma média de quase 23ºC, de acordo com recentes estudos.
Bom sinal para os veraneantes, de facto, mas péssimas para a vida marinha.
"Este calor, estas ondas de calor nos oceanos, fazem muita pressão sobre a vida marinha. Provocam mortes em massa e isso também afeta a vida humana. Menos fontes alimentares, logo menos fontes de rendimentos. As águas ficam mais quentes e perturbam todo o ecossistema marítimo, é uma tragédia, será pior ainda com o decorrer dos anos", referiu, calculando enormes impactos socioeconómicos.
"Países mais vulneráveis, concretamente no sul de África, na América Central e do Sul serão os mais vulneráveis, com menos condições para lutar contra este fenómeno. As chuvas vão prejudicar as colheitas e os oceanos quentes destruirão a fauna marítima, grande recurso para esses países", salientou Beckwith, que revela preocupação, acima de tudo, com os recifes de corais.
"Entre 2014 e 2017 registou-se um evento catastrófico de branqueamento de corais, na Austrália morreram mais de 30% dos corais. E os que não morreram ainda não recuperaram o suficiente para poderem sobreviver a um evento semelhante", afirmou.
Quanto ao futuro mais longínquo, o cientista revela-se mais pessimista. Os acordos, as convenções, sobre o tema são muitos, mas colocar em prática tem demorado mais tempo. Passar da teoria à prática, pede-se.
"O Acordo de Paris [em 2015] estabeleceu que a meta principal seria manter as temperaturas médias abaixo dos 2ºC e mesmo dos 1,5ºC. O cenário tem sido esse, é verdade, mas também porque desde então tivemos apenas três ou quatro anos mais quentes, com El Niño. Os próximos serão um teste a esse acordo, veremos, mas tenho receios, vejo as coisas escritas e não em formato ativo. É preciso acelerar as ações", referiu, dando exemplos do que se tem de fazer no imediato.
"Há muitos exemplos, como acelerar a eliminação do carvão, proteger e restaurar os ecossistemas, incentivar as energias renováveis. Tudo isto está nos acordos, mas é preciso fazer, é preciso avançar", concluiu.
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