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Foi assunto durante a pandemia de Covid-19, entre 2020 e 2022, mas pouco mais de dois anos depois ainda é tema de discussão nas escolas: a dificuldade em falar de algumas crianças e os problemas que educadores e professores têm para os entender.
Joana Filipa é terapeuta da fala em Torres Vedras e além de trabalhar em algumas escolas tem sentido "há já algum tempo" a sua agenda particular ficar bastante cheia. A culpa? Continua a dizer que é da pandemia.
"Das máscaras, sem dúvida. Largámos as máscaras, mas ficaram os problemas. Muitos vieram procurar ajuda na altura certa, quando os primeiros problemas começaram a surgir, mas outros, os pais, esperaram e acabou por ser muito tarde", diz Joana, fazendo uma comparação do que aconteceu durante a pandemia para os dias de hoje.
"A diferença é que se na altura eram as crianças mais jovens, até aos três anos, que necessitavam de mais ajuda, devido ao vocabulário mais reduzido, agora são outras mais velhas. Temos casos no nosso agrupamento que crianças de 5 e 6 anos não conseguem articular uma frase completa e estão a entrar para a escola", revela, atribuindo as culpas ao surto respiratório.
"Largámos as máscaras, mas ficaram os problemas. Muitos vieram procurar ajuda na altura certa, quando os primeiros problemas começaram a surgir, mas outros, os pais, esperaram e acabou por ser muito tarde"Joana Filipa, terapeuta da fala
"Penso que ninguém tem dúvidas do que o isolamento fez. Têm surgido muitos problemas associados à Covid-19, um deles é este, a necessidade de terapia da fala por parte de muitos jovens. No confinamento foram muitas as crianças que ficaram isoladas num quarto, agarradas a dispositivos eletrónicos, a ver televisão e sem convívio, muitos passavam mesmo grande parte do dia calados, apenas a ouvir. E daí surgiram então estes problemas. Quais? Essencialmente articulação, fala muito à bebé, etc. Os mais novos sempre aprenderam a falar ao lerem os lábios dos pais ou dos professores, as máscaras acabaram por travar esse desenvolvimento", salienta.
Maria do Carmo é uma mãe de 37 anos, uma das que recorreu a Joana Filipa, que recebeu um alerta da escola, em setembro de 2022.
"Tanto eu como o meu marido não ficámos em teletrabalho e a Teresa [filha] acabou por ficar em casa com o irmão mais velho. Ele tinha aulas online e ela ficava com ele. Um dia a diretora de turma [Teresa tinha entrado para o 5º ano em 2022] chamou-nos e disse que os professores estavam com problemas em perceber o que a Teresa dizia. Aconselharam-nos a procurar uma terapeuta da fala. Em casa não dávamos conta do problema, pois habituámo-nos à forma como a Teresa falava, mas depois da primeira consulta com a Joana percebemos que a Teresa tinha mesmo muitas dificuldades para articular uma frase completa", diz Maria do Carmo.
Qual a solução imediata para este problema? "Procurar profissionais, sem receios e vergonhas, pois ainda há muitas pessoas que têm vergonha, é mesmo a palavra, de procurar este tipo de ajuda", mas não só.
"Em casa não dávamos conta do problema, pois habituámo-nos à forma como a Teresa falava, mas depois da primeira consulta com a Joana percebemos que a Teresa tinha mesmo muitas dificuldades para articular uma frase completa"Maria do Carmo
"Estas crianças que têm estes problemas têm de ser muito bem acompanhadas e quando digo muito bem isso também tem a ver com o meio familiar. Nós ajudamo-las nas escolas, nos consultórios, mas depois em casa tem de haver outro tipo de ajuda. Quais? Olhe, sobretudo não as deixar demasiado tempo agarradas a televisões, telemóveis ou tablets. Tem de haver uma interação contínua com os familiares. Procurar conversar com as crianças, estimulá-las, etc. Essa será a ajuda ideal para que o desenvolvimento da fala seja mais rápido", afirma a terapeuta, que não tem dúvidas que se as questões de oralidade não forem resolvida, no futuro esses problemas vão passar para a restante "aprendizagem académica, nomeadamente em termos de escrita e de leitura.
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Escolas "em alerta"
Crianças mais pequenas, outras mais velhas, o problema continua a ser o mesmo, a dificuldade de construir uma frase, diz-nos a especialista. E se a criança chega ao terapeuta pela mão dos pais, a verdade é que ali chega depois de na escola detetarem algum tipo de problema. Sempre foi assim, mas agora mais.
"Estamos a ter e vamos ter consequências da pandemia durante algum tempo. As máscaras foram um problema, o confinamento também foi e agora começa o efeito bola de neve. Cada vez mais os professores levantam uma bandeira de alerta, sobre este ou aquele aluno. A oralidade, a construção de uma frase, o aluno fechar-se, tudo isto são sintomas que estamos a ver cada vez mais. E temos também a certeza que há ainda mais crianças a precisarem de ajuda, mas cujos problemas ainda ninguém os identificou", diz ao SAPO24 José Fonseca, da FME.
"Cada vez mais os professores levantam uma bandeira de alerta, sobre este ou aquele aluno. A oralidade, a construção de uma frase, o aluno fechar-se, tudo isto são sintomas que estamos a ver cada vez mais"José Fonseca
As escolas são aliadas? "Sem dúvida. Os principais diagnósticos são feitos nas escolas, ou melhor, as tais bandeiras são levantadas maioritariamente nas escolas, pois os pais, com os seus trabalhos, têm poucas horas diárias com os seus filhos. Ou acabam por levá-os a atividades desportivas, ou estão a fazer o jantar, ou qualquer outra coisa, e o convívio acaba por ser reduzido, é o tempo de não se conseguir articular um discurso completo. E são as escolas que estão mais em alerta e temos recebido cada vez mais alertas de crianças a necessitarem de terapia da fala. Se antes eram crianças até aos três anos, por média, agora há mais velhas", diz, salientando que também os professores passam por dificuldades.
"Claro que sim. Eles, os professores, detetam os problemas, mas depois há a questão de tentar ensinar debatendo-se com este problema. Os educadores e professores fazem o seu trabalho, mas torna-se complicado quando acabam por não entender os alunos. Essas são outras queixas que recebemos, cada vez mais", concluiu.
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