No final de 2022, à quarta tentativa, a norma relativa à presunção de contrato de trabalho nas plataformas digitais, como é o caso da Uber, foi aprovada na especialidade no grupo de trabalho da Comissão do Trabalho, Segurança Social e Inclusão, que discute as alterações laborais no âmbito da Agenda do Trabalho Digno.

A versão aprovada da proposta, apresentada pelo Partido Socialista e que incluiu alterações apresentadas pelo Bloco de Esquerda, prevê a presunção da existência de contrato de trabalho "quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas" características, deixando de ficar expressa a referência aos operadores intermédios, ou seja, as empresas com várias viaturas e motoristas que tinham como cliente as plataformas digitais como a Uber, Bolt ou Free Now, ou pessoas que trabalham por conta própria e que formaram empresas para poder estabelecer uma relação com estas plataformas.

A Lei 45/2018, que rege o setor, já referia "que entre o operador TVDE e o motorista tem que haver um contrato escrito de prestação de serviços ou um contrato de trabalho, mas que se presume que o artigo 12.º poderá ser aplicado caso se verifiquem os indícios” nele previstos.

O objetivo da alteração agora proposta e aprovada foi criar um elo legal entre os motoristas e as plataformas. Assim, a plataforma não poderá estabelecer termos e condições de acesso à prestação de atividade "mais desfavoráveis ou de natureza discriminatória" para os trabalhadores com relação direta com a plataforma face às condições definidas para operadores intermédios.

No entanto, a figura do intermediário não é excluída pela nova lei. Esta define que "a plataforma digital pode, igualmente, invocar que a atividade é prestada perante pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital" e, nestas situações, aplica-se a presunção de contrato, "cabendo ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora".

Então, para que serve esta alteração? Para que nos casos em que se considere a existência de contrato de trabalho, se apliquem as normas compatíveis com a natureza da atividade desempenhada, nomeadamente o disposto em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias e limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação.

Segundo a proposta, a existência de contrato de trabalho pode ser reconhecida quando o operador de plataforma digital fixa uma remuneração, controla e supervisiona a prestação da atividade, restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, entre outros critérios.

A nova legislação, que resultou na criação do artigo 12.º - A do Código de Trabalho, tem assim como objetivo proteger os trabalhadores do setor de forma a dar-lhe as garantias básicas de segurança inerentes a um contrato de trabalho, mas nem motoristas, nem plataformas digitais parecem ter ficado satisfeitos.

Questionada sobre as alterações legislativas ao Código do Trabalho, a Associação Portuguesa das Aplicações Digitais (APAD) afirmou ao SAPO24 que "esta regulação, em vez de tornar a flexibilidade e o acesso a oportunidades de trabalho compatíveis com mais proteções sociais, coloca em risco a forma de subsistência de milhares de trabalhadores e empresas, comprometendo gravemente o trabalho que Portugal tem feito para promover a inovação em anos recentes."

A associação acusa ainda o Governo e o Parlamento de terem ignorado "todas as partes afetadas por esta regulação", sobretudo numa altura em que "a União Europeia está prestes a regular o trabalho em plataforma, o que tornará esta regulação obsoleta muito em breve". "Acresce, ainda, o facto de as alterações no âmbito da Agenda do Trabalho Digno serem abrangentes e extensivas e sem qualquer período transitório", lamenta.

"As plataformas continuam comprometidas em melhorar as condições de trabalho de quem precisa destes serviços e em dar aos trabalhadores independentes mais benefícios, enquanto estes conseguem preservar a sua flexibilidade e o controlo sobre a sua atividade. Queremos trabalhar com todas as partes para melhorar o trabalho independente, em vez de o eliminarmos", afirma.

Já a Associação Nacional Movimento TVDE acusa o Governo de estar a "abrir a porta a que os contratos sejam feitos diretamente com as plataformas", colocando em causa milhares de empresas.

"Todos sabemos que não é do interesse das plataformas admitir trabalhadores. Ao mesmo tempo, caso os contratos passem a ser celebrados diretamente com as plataformas vai pôr-se em causa um universo de cerca de nove mil empresas [constituídas para operarem com as plataformas]. Destes nove mil, as aplicações vão procurar, muito provavelmente, já se ouve algum ruído, as empresas maiores, digamos assim, já com 100 ou 200 carros, apesar de ainda ninguém saber valores exatos. A verdade é que quem tem dois, três ou cinco carros vai ficar numa situação mais complicada", explica Bruno Trindade, vice-presidente administrativo da Associação Nacional Movimento TVDE ao SAPO24.

Bruno Trindade antecipa que esta alteração legislativa irá levar à falta motoristas. "O que o TVDE oferece é uma liberdade de a pessoa poder trabalhar de manhã, vir para ao pé da família, entretanto sair mais um pouco à tarde, escolher descansar à noite ou durante o dia, liberdade para conciliar a minha vida profissional com a pessoal. A partir do momento em que há um contrato de trabalho com um horário estipulado das 8h às 17h ou das 9h às 18h, os períodos de pico vão deixar de ser rentáveis para as empresas. É que nós temos vários períodos de pico e nenhum deles é de oito horas seguidas", explica o dirigente.

"O Governo quer atribuir aqui, de uma forma cega, um contrato de trabalho de oito horas. No entanto, existem outros tipos de contratos de trabalho na área dos transportes, como o CCTV (contrato coletivo de trabalho), que poderia ser uma das alternativas", defende o vice-presidente administrativo da ANM TVDE, acrescentando que este tipo de contrato que propõe como solução "é comum entre camionistas, condutores de autocarro, motoristas de distribuição porta a porta".

"Ou seja, nós não deixamos de ser motoristas, temos é o transporte de passageiros em viaturas ligeiras. Essa podia ser uma solução, do meu ponto de vista", defende.

Caberá à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) fiscalizar o cumprimento da nova lei, que terá de fazer uma campanha de fiscalização extraordinária no setor das plataformas digitais no primeiro ano de aplicação da Agenda do Trabalho Digno.