Que Charles Dickens nos perdoe a bastardização da sua célebre citação. O nome “Margaret Keenan”, diz-lhe alguma coisa? É possível que já não se lembre — o que não é de censurar, dado tudo o que atravessámos este ano, mal refeitos de 2020 —, mas esta foi a primeira pessoa do mundo a ser vacinada com a vacina da Pfizer — a Rússia já se tinha adiantado, com a sua própria vacina, se bem que sob controvérsia.

A injeção que deu o tiro de partida para o processo de vacinação a nível global ocorreu neste mesmo dia, em 2020, quando a mulher britânica de 91 anos se deslocou ao Hospital da Universidade de Coventry para receber a primeira dose. Na altura, chamámos-lhe “O princípio do princípio do fim” da Covid-19. No entanto, ainda aqui estamos, a viver sob pandemia. O que mudou desde então?

Bem, Keenan ainda cá está para contar a história, feliz por ter feito parte de um momento tão importante, e já recebeu a terceira dose da vacina dada a sua idade avançada. Todavia, é por aqui que podemos começar por analisar o nosso presente estado de coisas.

Mesmo que uma franja da população o conteste, é inegável o avanço que as vacinas representaram no combate à Covid-19. Tome-se o exemplo de hoje a nível nacional: apesar da nova vaga que atravessamos representar um número muito superior ao verificado há um ano (a 8 de dezembro de 2020 foram registados novos casos de 2.905, hoje foram 5 286), o indicador mais preocupante, dos óbitos, mostra um panorama bem distinto: morreram 81 pessoas, ao passo que o boletim de hoje revela 15 vítimas mortais.

Se quisermos ir mais longe, hoje temos 917 pessoas internadas devido à Covid-10, 138 em cuidados intensivos; há um ano, esse número situava-se nos 3.263 pacientes, 499 em UCI.

O que podemos concluir? Os números levam-nos àquilo que a ciência defendeu desde o início: que as vacinas fortaleciam o sistema imunológico contra a Covid-19 mas não eram capazes de impedir a sua transmissão por completo, apesar de a dificultarem. É por isso que temos hoje mais infetados, mas muito menos mortos e internados. É a pandemia a tornar-se numa endemia, ou seja, a aproximar-se das características de uma gripe, apesar de ser bem mais perigosa: desde que estejamos preparados, a vida pode decorrer com relativa normalidade.

Exemplo disso é o progresso que vivemos ao longo deste ano. Depois da vaga altíssima que decorreu em janeiro e fevereiro deste ano, depois do período das festas, a vacinação (auxiliada por um conjunto de restrições progressivamente aliviadas) foi arrepiando caminho e Portugal deu o exemplo ao mundo depois de uma fase inicial atribulada — lembra-se de quem passava à frente na fila? Ao mesmo tempo, autotestes foram disseminando-se, a testagem tornou-se comparticipada (ainda que sem a democratização que se desejaria) surgiram os certificados de vacina, e o país foi tornando-se mais preparado para conter os picos pandémicos.

Face ao número de infetados que tem vindo a crescer nas últimas semanas, é seguro afirmar que, sem vacinação, provavelmente as restrições que enfrentamos até ao início de 2021 seriam bem piores: há um ano voltámos a ter estabelecimentos fechados, recolhimento obrigatório e recomendações para ficar em casa. Agora, temos de apresentar certificados e/ou testes negativos em determinados eventos e espaços.

Que nada disto seja interpretado como um ingénuo exercício de otimismo. Há muito por resolver e novos problemas que surgiram. A imposição de certificados de vacinação fez crescer um movimento negacionista que não desaparecerá tão cedo, mesmo que a pandemia acabe, procurando outros pretextos para exercer a sua agenda anti-sistema. Além disso, a própria discriminação inerente à apresentação de certificados levanta questões quanto a direitos individuais, à distinção entre cidadãos e à dicotomia entre liberdade e responsabilidade cívica — o que se agrava quando temos em conta que o tema da vacinação obrigatória começa a surgir em alguns países.

A isso somam-se o agravamento de problemas que arriscam tornar-se crónicos, das insuficiências na saúde ao atraso das aprendizagens dos alunos. Mas há uma outra questão que se arrisca a eternizar-se caso não haja concertação a nível mundial, podendo Portugal pouco fazer por resolvê-la por si próprio.

Se nos recordarmos do estado de espírito que se vivia há um ano, foram estabelecidos prazos para diferentes regiões do Mundo atingirem a imunidade de grupo, consoante os recursos financeiros dos diferentes países para encomendar vacinas. Nessa calendarização, estava previsto, por exemplo, que os EUA atingiriam a imunidade de grupo no segundo trimestre de 2021 e a Europa no terceiro; já a Índia teria de esperar até 2023 e o continente africano nem vinha nas previsões.

Hoje sabemos que isso não é verdade, e não só porque há resistências à vacinação que impedem essa mesma imunidade. É que quando destinamos grande parte das vacinas ao mundo desenvolvido e deixamos o sul global à espera, arriscamo-nos a que surjam variantes como a Delta (identificada na Índia) e a Ómicron (na África do Sul), mais resistentes e infecciosas, nesses mesmos países.

Vivemos, portanto, num dilema. As vacinas, como se sabe, têm um período de validade: da mesma forma que nos habituamos a receber os reforços contra a difteria ou o tétano, a imunidade contra a Covid-19 decai ao fim de algum tempo e é preciso receber nova dose.

Para não recuarmos aos níveis de proteção pré-vacina, é então necessário dar vacinas de reforço, como começou a acontecer em Portugal com a terceira dose para a população idosa ou com riscos de saúde. Além disso, recentemente ganhou lastro a estratégia de vacinar também as crianças para diminuir a transmissão.

O problema é que, ao mesmo tempo, continua-se assim a focar os esforços de vacinação em países que já estão relativamente bem protegidos, negligenciando-se os demais: mais de 80% da população no continente africano não recebeu ainda qualquer vacina, sendo que só 7,5% está totalmente vacinada. Se os níveis de imunização são de 30% na África do Sul ou 26% no Egito, na Nigéria são de apenas 3,4% e na Tanzânia de 2,6%.

Como se resolverá este “pau de dois bicos”? Essa é, provavelmente, a grande questão que será debatida depois da fase de inverno no hemisfério norte do planeta. Há cada vez mais ferramentas de combate à covid-19 quase prontas e outras a serem adaptadas — esta semana, por exemplo, a Agência Europeia do Medicamento aprovou o RoActemra para tratar casos graves. Mas até lá temos de continuar à espera, naquele que não é nem o melhor dos tempos, nem o pior dos tempos.