Em causa está uma decisão de 11 de outubro, na qual o juiz Neto de Moura faz censura moral a uma mulher de Felgueiras vítima de violência doméstica, minimizando a culpa do agressor pelo facto de a vítima ter cometido adultério.

O juiz invoca a Bíblia, o Código Penal de 1886 e até civilizações que punem ainda o adultério com pena de morte, para justificar a violência cometida contra a mulher em causa por parte do marido e do amante, que foram condenados a pena suspensa na primeira instância.

“O adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”, lê-se na decisão do tribunal superior, também assinada pela desembargadora Maria Luísa Abrantes.

Um grupo de confissões cristãs tomou posição conjunta embora com reflexões individuais na sequencia de um desafio lançado pelo coordenador da área de ciências das religiões da Universidade Lusófona, Paulo Mendes Pinto, por considerar que este caso pode criar equívocos na sociedade.

“Empenhada no diálogo com as Religiões, a área de Ciência das Religiões não podia deixar de apelar às confissões cristãs, as que se podem sentir visadas por esta atitude um juiz que usa a religião como ferramenta de intolerância, para nos transmitirem a sua posição, a sua visão, uma breve reflexão que mostre ao cidadão preocupado com o mundo o seu lugar nas dinâmicas da atualidade”, explica.

Nesta reflexão surgem testemunhos de cristãos católicos (jesuítas), do Instituto Bíblico da Convenção das Assembleia de Deus, da Aliança Evangélica Portuguesa, da Missão Ortodoxa em Portugal, da Igreja Adventista do Sétimo Dia, Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos dias e das Testemunhas de Jeová.

As confissões cristãs que apresentaram os seus testemunhos condenam qualquer justificação para a violência.

Para o primaz da Missão Ortodoxa em Portugal, Alexandre Bonito, leis contra as mulheres são sempre atos de violência e não de justiça além de considerar que não se justifica a inclusão da Bíblia, do Torá, do Corão ou de outros livros e regras sagradas que se aplicam apenas no conceito estritamente religioso e no domínio privado.

O presidente da Igreja Adventista do Sétimo dia em Portugal lamenta a utilização de citações bíblicas como referência ao adultério ou atenuante a atos de violência contra a mulher.

“Neste como em qualquer outro caso, a Bíblia não pode, nem deve ser utilizada para justificar violência”, refere o pastor António Amorim.

O pastor Paulo Branco, do Instituto bíblico da Convenção das Assembleias de Deus em Portugal, considera lamentável que um juiz, homem de leis e cultura tenha usado a Bíblia “com a agravante de esta situação se passar num Estado laico”.

“Não se pode retirar versículos fora do contexto, nem usar a Bíblia a nosso belo prazer, para aquilo que nos interessa”, disse.

O pastor da Igreja Evangélica Baptista de Cascais e investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo considera que “usar a Bíblia para justificar a violência contra a mulher é desconhecer o texto sagrado”

“É lamentável que contrariando o princípio hermenêutico da Bíblia alguns façam uso errado do texto sagrado ou mesmo da religião para normalizar o abuso contra as mulheres”, defende.

Depois deste caso ter vindo a público, desencadeando vários protestos na sociedade portuguesa foi instaurado um processo de averiguações pelo Conselho Superior de Magistratura.

O processo de averiguações encontra-se em sigilo e deverá ser apreciado pelo plenário do CSM, na reunião de 5 de dezembro, que decidirá se instaura ou não um inquérito disciplinar ao juiz Neto de Moura.