A Igreja Católica tem dado pouca atenção ao problema da violência doméstica, mas deveria considerá-lo como “uma prioridade”. A opinião é expressa por Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas Portuguesa, em declarações ao 7MARGENS, a propósito dos últimos casos de mulheres assassinadas pelos maridos ou companheiros em Portugal.

A questão motivou na tarde desta quinta-feira, 7 de Fevereiro, uma reunião entre vários membros do Governo, a procuradora-geral da República e representantes do Ministério Público, bem como responsáveis de todas as forças de segurança. A questão central da reunião era o aperfeiçoamento da resposta institucional em termos de segurança e protecção de mulheres ameaçadas. Segundo um comunicado do Governo enviado às redacções, foi decidido “agilizar a recolha, tratamento e cruzamento de dados” relativos a homicídios e outras formas de violência doméstica; “aperfeiçoar os mecanismos de proteção da vítima nas 72 horas subsequentes à apresentação de queixa”; e “reforçar os modelos de formação, que passarão a ser comuns à PSP e GNR, magistrados e funcionários judiciais”, e “centrada na análise de casos concretos”.

João Lázaro, presidente da APAV, sublinha também a necessidade de actuar numa “maior fiscalização” da parte de entidades públicas e privadas e, “principalmente, com uma maior coordenação entre as diferentes entidades, para que as vítimas nunca fiquem desamparadas”. “Há que redobrar esforços e articular policia e tribunais. O Estado deve dar o exemplo de articulação. E estamos a falar de coisas pequenas como uma denúncia não andar de um lado para o outro durante muito tempo, o que acaba por prejudicar as vítimas.”

“Não tem havido nenhum enfoque nesta problemática e a Igreja não tem de tratar da casuística, mas o problema tem de ser integrado na pastoral familiar e numa acção o mais abrangente” possível, acrescenta Eugénio Fonseca. Que junta uma pergunta: “Porque é que aumentam os casos de violência doméstica quando há crises económicas?”

José Traquina, bispo de Santarém e presidente da Comissão Episcopal de Pastoral Social, diz que ficou “chocado com as notícias” desta semana, como já de outras vezes. Na próxima segunda-feira, reunirá com o bispo da comissão do Laicado e Família, D. Joaquim Mendes, para ver se, em conjunto, decidem promover alguma iniciativa.

“É bom também promover no seio da Igreja uma reflexão” sobre o assunto, diz, considerando que “é na prevenção que o problema se resolve”: “A minha primeira reacção é ver que é necessário um trabalho que vá às origens, porque o problema é a falta de formação humana para viver em comunidade e em família”, acrescenta. “Isto mexe com a pastoral juvenil, com a educação sexual, com a educação para os afectos.”

“Tenho falado sobre o assunto…”

O bispo José Traquina pensa mesmo na possibilidade de o episcopado publicar uma nota sobre o tema. “Todos os anos temos este problema e eu já tenho falado sobre o assunto em diferentes circunstâncias.” As estruturas católicas são chamadas a dar uma resposta, diz o responsável pelo trabalho social da Igreja, admitindo que poderia haver mais instituições católicas a dar apoio. Mas isso nem sempre é fácil, acrescenta, tendo em conta as questões legais que por vezes se colocam: “Não podemos levar uma pessoa para casa só porque ela precisa, como fazia São João de Deus com os pobres que encontrava na rua.” Ou como acontecia, em Portugal, com o Padre Américo, na altura em que fundou a Casa do Gaiato, dando abrigo a  crianças abandonadas ou vulneráveis.

De qualquer modo, insiste o bispo, o problema está na educação e na prevenção. Ainda há duas semanas, na Jornada Mundial da Juventude, no Panamá, o Papa se referiu ao problema perante os mais de 100 mil jovens que participaram no acontecimento, dizendo que o sofrimento de Jesus antes de morrer se prolonga, entre outras situações, “nas mulheres maltratadas, exploradas e abandonadas, despojadas e ignoradas na sua dignidade”.

“O Papa chamou a atenção e muito bem, pois é preciso os jovens terem consciência”, diz José Traquina. “Não se pode esconder estes dados negativos nem tratar com banalidade algo que é muito importante, para que os jovens saibam que isto acontece e, sobretudo, conhecer a génese do problema.”

Nem sempre, no entanto, a sensibilização corre bem, alerta a irmã Júlia Bacelar, das Irmãs Adoradoras. Conhecidas por trabalharem com situações em que as mulheres são vítimas (mães solteiras, ex-toxicodependentes, vítimas de tráfico…), estas religiosas já dirigiram, entre 1995 e 2015, uma casa-abrigo em Évora (há quatro anos, a casa ficou a ser dirigida pelos técnicos que lá trabalhavam). “Já fui a vários seminários falar sobre este tema e encontrei sempre seminaristas que não estavam nada virados para conhecer esta realidade”, diz.

“Ficamos muito felizes com jornadas da juventude mas, depois, não se continua a falar nas paróquias. Nem se tomam posições claras como as do Papa, que fala sempre a tempo e fora de tempo.” E acrescenta uma ideia concreta: “Se, a par dos centros de saúde e das escolas, por exemplo, as paróquias, os padres e movimentos católicos estivessem atentos ao problema, seria mais fácil detectar-se estas situações, tendo em conta a maior proximidade a que eles estão das pessoas.”

A irmã Júlia parte do seu conhecimento do terreno: durante 20 anos, a casa-abrigo dirigida por ela própria e pela sua congregação foi a única instituição do género sob a responsabilidade da Igreja Católica – mesmo se há outras congregações ou grupos que apoiam vítimas de violência de outra forma. A casa-abrigo, que tinha um capelão, nunca recebeu a visita de qualquer bispo, diz. “Eu também nunca convidei ninguém a ir lá, mas creio que isso acontece porque o problema passa ao lado das preocupações.”

“O problema é de nós todos”, também do clero

Na casa, viviam 23 mulheres e crianças. Durante um ano, passavam, por lá pouco mais de vinte mulheres entre os 35 e os 60 anos. “Casos muito complicados”, observa, para sublinhar a “atenção especial” que essas mulheres deveriam merecer: “Uma mulher com mais de 35 ou 50 anos, que levou pancada durante 15, 20, 30 anos requer uma atenção diferente. Para ela é tudo muito doloroso, cheio de sofrimento.”

Os dados do Observatório das Mulheres Assassinadas mostram que, entre 2004 e 2017, as faixas etárias com mais vítimas estão exactamente acima dos 36 anos: no total, nesses 14 anos, foram mortas 179 mulheres com mais de 50 anos e 140 mulheres entre os 36 e os 50 anos.

Perante as observações da irmã Júlia, o bispo José Traquina diz que também nos seminaristas há “uma questão de educação e sensibilização geral, que considera sempre que o problema é dos outros”. Mas essa indiferença não pode admitir-se, muito menos em candidatos ao sacerdócio: “Se estão a fazer o caminho de uma vocação que é por causa dos outros, não podem ser indiferentes.” Nem se pode atirar a questão para outros: “O problema não é ‘deles’, é de todos.”

Eugénio Fonseca junta outra sugestão: nas instituições da Igreja, escolas, colégios, jardins de infância, as crianças por vezes falam implicitamente do que vêem em casa. Se houver actuação imediata, podem talvez evitar-se problemas mais graves, diz.

O presidente da Cáritas chama a atenção para outro dado: “Em muitos casos, os agressores já viram as mães a ser agredidas, há um ciclo de violência inter-geracional. E em alguns casos, o agressor também é vítima de estruturas que não funcionam”, admite. Conta o caso de um homem, com quem falou em tempos numa prisão: era casado com uma mulher, compradora compulsiva e o casal estava sempre cheio de dívidas; o homem foi procurando ajuda, sem êxito, ao mesmo tempo que chamava a atenção da mulher; um dia, o fisco penhorou-lhe a casa e ele acabou a matá-la pouco depois.

“Andei a pedir ajuda para a minha mulher, nunca ninguém me quis ajudar, dizendo que era um problema do casal”, dizia-lhe o homem. “Quando fiz o crime que fiz, apareceu toda a gente que eu precisava que tivesse aparecido durante os anos em que andei a pedir ajuda”, lamentava.

Conclui Eugénio Fonseca: “Não quero comparar o que se passa com as mulheres vítimas. Mas penso que é preciso começar também a falar nestes problemas e chamar preventivamente a atenção.”

(Texto com o contributo de Maria Wilton)

Artigo originalmente publicado no site 7Margens.