O número de pessoas que em 2018 foram forçadas a fugir das respetivas casas em todo o mundo, devido a conflitos civis, violência, alterações climáticas ou questões relacionadas com a respetiva sexualidade ultrapassa os 70 milhões.
O número é grande - é 1% da população mundial - e teima em não ficar pequeno em estatísticas semelhantes que nos dizem que 37 mil pessoas, por dia, pedem asilo. Entra-nos pela casa adentro nos jornais e na televisão, entra-nos pelo mar adentro nas costas e nas praias da Grécia e da Itália e, nos últimos anos, também nos têm entrado pela vida adentro.
Perante a dimensão do problema, a quarta edição da Web Summit em Lisboa ousou perguntar: o que é que pode a tecnologia fazer pelos refugiados?
Mike Walton, responsável pelo desenvolvimento digital estratégico do Comissariado para os Refugiados da ONU, juntou-se à conversa com George Papandreou, ex-primeiro-ministro da Grécia, num dos palcos da cimeira onde se tentou responder à questão.
A pergunta pode parecer grande e abrangente, mas há um dado que diminui o espetro e que pode concretizar possibilidades: mais de 90% destas pessoas têm um smartphone. Ou seja, a tecnologia vem na palma das mãos, atravessa com eles mares e fronteiras e é o primeiro ponto de contacto para poderem avisar a família de que chegaram ao destino. É aqui que começa uma nova vida, diz Mike. Por outro lado, essa mesma tecnologia pode ser usada no momento do registo de chegada e identificação para a formação de uma base de dados que permita um contacto imediato entre pessoas e organizações de apoio.
Parece simples. Mas não é.
Porquê?
Porque com grande poder vem uma grande responsabilidade (certo, Peter Parker?) e tudo depende de em que mãos reside esse poder e essa responsabilidade.
George Papandreou, agora deputado no parlamento helénico, e com um passado como refugiado, quando tinha apenas 15 anos, recordou as palavras de Edward Snowden na abertura desta edição da Web Summit e alertou para o facto de as bases de dados poderem ser uma faca de dois gumes. Se, por um lado, podem facilitar a comunicação e, em casos limite, alertar as autoridades para intervir; por outro, podem, como foi o caso da minoria rohingya no Myanmar, antiga Birmânia, ser utilizados para promover a violência e disseminá-la nas redes sociais.
Voltamos ao ponto: quem tem o poder?
“Uma das coisas por que um chefe de Estado é responsável é por não fazer dos refugiados bodes expiatórios. [...] São seres humanos, temos não só de os respeitar, mas também ver como podemos restaurar os seus direitos e integrá-los na nossa sociedade. Não é simples, não é fácil, mas eu já vi e vivi a vida de um refugiado. Para dar a volta a isto, em vez de olharmos para os refugiados como um problema, temos de olhar para eles como uma possibilidade, são pessoas que estão a fugir dos seus países porque querem uma vida diferente”, nota Papandreou.
“Sejamos claros e honestos. Estas pessoas são seres humanos (…). E a fonte do problema é a existência de regimes ditatoriais, de conflitos civis”, assinalou o político grego, defendendo que “estas pessoas podem ser um catalisador da mudança”.
Pandreou fez questão de relembrar, todavia, que os refugiados "têm um nível de grande vulnerabilidade” e isso deve ser considerado quando se pondera a aplicação de soluções tecnológicas — “não podemos permitir que eles fiquem mais vulneráveis, que sejam mais explorados”.
As dúvidas e as perguntas devem estar presentes no debate, tal como estavam presentes as declarações de Snowden neste segundo dia de Web Summit, mas isso não afasta o antigo chefe de governo grego desta certeza: “a tecnologia dá poder aos refugiados”. Eles trazem um mundo nas suas mãos, recorda. Através do smartphone podem “aceder a serviços de educação, de saúde ou recolher informação”.
A resposta à pergunta que dá mote à conferência nunca chega realmente. Parece tudo vago e disperso. Falta algo em concreto. Um exemplo. Mike Walton tem histórias e boas histórias. Conta que um dia chegou a Kakuma, no Quénia, e viu um grupo de refugiados, programadores, com computadores portáteis a desenvolver aplicações para Android para o resto da comunidade. Tinham apenas um gerador rudimentar, pouco equipamento, não tinham impressoras, o wi-fi era de fraca qualidade, mas ainda assim arranjaram forma de colocar o seu conhecimento ao serviço da comunidade. O que é que aconteceu? A Microsoft e a Google ajudaram com acesso a educação digital.
Mas - e permita-me o leitor que eu pessoalize um pouco - o meu ponto de partida era outro: o que é que uma cimeira como esta tem de solução para oferecer? Essa era a minha pergunta, para a qual tardava em achar resposta concreta. Mas encontrei-a numa família portuguesa emigrada na Suécia que fundou a Global Plenitude, uma empresa que quer ajudar refugiados a arranjar trabalho. Como? Online. Onde? Nos campos de refugiados. O objetivo? Ajudá-los a criar uma rotina e a conquistar a sua independência financeira.
Eles explicam melhor do que eu. Portanto, temos Paula Morais, a mãe, e os filhos Beatriz e Tomás Ferreira. Todos eles nómadas num mundo globalizado. Já viveram em vários países, sozinhos e em família, mas entre os relatos das voltas ao mundo, os da mãe Paula foram ficando mais no ouvido. Não são histórias e imagens de contos de fadas, pelo contrário. Viu-as pessoalmente ao serviço do Laser, um projeto financiado pela União europeia e que a levou a conhecer os campos de refugiados da Jordânia e do Líbano.
Com base no trabalho naqueles campos, Paula conta que “foi nascendo esta ideia” que chega ao papel de rascunho em 2015. “Muito deles [refugiados nos campos] diziam: 'tenho habilitações literárias, tenho o meu curso, sou programador, sou web designer, sou tradutor, sou professor, será que me arranja qualquer coisa para fazer?'”.
Estar num campo de refugiado é, “ao mesmo tempo, profundamente triste e esperançoso”, diz Paula. “Nós, seres humanos, temos a capacidade de nas situações mais horríveis por vezes encontrarmos alguma rotina que nos permite manter alguma estabilidade na nossa vida”.
As pessoas querem trabalhar não só pelo dinheiro, mas também para aproximar a sua vida de um quotidiano o mais normal possível. Paula descreve do campo de Zaatari, na Jordânia, rodeado por muros e arame farpado, guardado por artilharia pesada e membros do exército, mas onde desabrocha vida na avenida principal, que ganhou o nome de Champs-Elysée. Tal qual na prestigiada avenida de Paris, é aqui que estão as lojas, o glamour e o sonho possível num campo de refugiados. “É lá que as pessoas tiram fotografias, compram vestidos de noiva, porque continuam a acontecer casamentos. Há uma agência de viagens, porque quando conseguem ser aceites num país precisam de comprar uma viagem para poderem ir... E veem-se crianças a brincar com a água, a saltar nas poças. Por outro lado, ao mesmo tempo, há o desesperante acesso a comunicações, que por vezes é cortado por questões de segurança, caso haja algum atentado terrorista, por exemplo…”.
O trabalho é bem-vindo a entrar neste quadro. E o objetivo da Global Plenitude é facilitar o recrutamento a empresas de todo o mundo que olham para estes campos, descobrem valor e estão interessadas em contratar refugiados para trabalhar remotamente.
A empresa ainda está a testar um protótipo, mas espera em breve começar os testes no terreno, com a Jordânia a alinhar-se como a geografia mais provável para a estreia. O objetivo é que daqui a dois anos possa estar tudo a funcionar. Ideias não faltam, desde as ligações a ONG’s, até à possibilidade de oferecer benefícios fiscais às empresas que adiram ao projeto.
A tecnologia pode ajudar a restaurar (ou criar novas) rotinas e isso pode ser já meio caminho andando para uma nova vida.
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