“É uma longa história”, assume Michael Guggenberger, velejador de nacionalidade austríaca que durante 249 dias fez uma volta ao mundo a solo num veleiro, sem paragens e ajuda técnica, na companhia de 250 latas de sardinha, um rádio, cartas náuticas, sem tecnologia, uma determinação única e diversas privações a bordo.

Guggenberger terminou a Golden Globe Race, a 3.ª edição desta aventura a solo criada em 1968, ele e mais dois velejadores, entre 16 que se perfilharam do ponto de partida a 4 de setembro de 2022 em Les Sables d’Olonne, França. 30 mil milhas náuticas depois, a 12 de maio de 2023, atracou no porto francês.

Os primeiros passos no mundo da vela de Michael Guggenberger remontam aos primeiros anos da década passada. A ideia da regata nasce a seguir. “Em 2015, quando anunciaram a regata para 2018 comecei a pensar”, recordou em conversa com o SAPO24. “Tentei nessa edição, 2018, mas não consegui e virei-me para a de 2022”, continuou. “E consegui. Fui rookie para a regata, mas já não sou mais”, disse, sorridente.

Detalha uma breve explicação das razões que o levaram a partir pelo mundo. “Gosto do mar, de velejar e ocorreu-me. Baseado nos livros de quem já tinha feito, li artigos e pensei se conseguia fazer. Apareceu a regata e a oportunidade”, confessou.

A vontade de ir e fazer “foi um check-list do ponto de vista filosófico sem ser profundo”, resumiu Michael Guggenberger, ou “capitão Gugg”, como é conhecido.

A residir num país sem mar, a Áustria, a preparação para a 3.ª edição da Golden Globe Race foi diferente de outros velejadores. “Preparei-me durante a pandemia. Tinha outro barco que estava na Eslovénia e na Croácia, tinha planos de trazê-lo para a Áustria, mas devido ao lockdown vendi-o e, em maio de 2020, comprei outro em França, um barco da versão de 2018, um Biscay 36. Como viajava em trabalho pela Europa consegui trazê-lo”, explicou.

“Era carpinteiro. Fiz cenários para filmes na Áustria durante 10 anos”

Estava iniciado um caminho sem retorno. As mãos que começaram a segurar cabos e içar velas foram as mesmas que usou no exercício da anterior profissão. “Era carpinteiro. Fiz cenários para filmes na Áustria durante 10 anos”, contou. “Mas agora sou profissional da vela e faço dinheiro com isto. Sou key note speaker em eventos corporativos também”, enfatizou o velejador que integra o projeto de vela social Mirno More.

A transição da carpintaria para a vela foi fácil. “Trabalhava com diferentes materiais e isso ajudou-me, tem tudo a ver, usar as mãos e o cérebro”, comparou.

A preparação especifica foi levada a cabo ao longo de “dois anos e meio”, registou. “Comecei a trabalhar non stop desde então para o barco e para a circum-navegação. Abdiquei do trabalho, eu e mais o resto das pessoas envolvidas”, partilhou.

“É muito tempo até à regata e em especial se não sabes se tens dinheiro para conseguires ir e ter tudo em ordem”, referiu. “Em abril de 2022 assinei o contrato com a Nuri (marca da Pinhais, empresa artesanal de conversas de sardinhas sediada em Matosinhos) e tive quatro meses para ter tudo em ordem. Foi bom ter o patrocinador”, enalteceu.

“Tinha de ir”, disparou. “Comprei velas novas e metade delas recebi-as em agosto (2022) a tempo da sessão fotográfica. E as outras três chegaram uma semana antes da partida. Sem experimentar, segui viagem”, confidenciou.

“Na mente aparecia sempre 'o que é que estou a fazer aqui'”

Volta atrás ao primeiro dia da aventura oceânica. Um dia de sentimentos mistos. “Foi dura a preparação. De um lado ficas contente porque estás na linha de partida. Por outro lado, estás cansado e stressado pela preparação e tristeza porque deixas tudo para trás durante muito tempo”, assinalou.

A regata a solo partiu a 4 setembro de 2022, dobrou o Cabo da Boa Esperança, Leeuwin e Horn e três oceanos, Atlântico, Índico e Pacífico. “A alegria foi o pôr e o nascer do sol. Ver albatrozes, baleias... e tive também a alegria aos domingos, dia de começo da regata e mudava a caixa de comida a cada domingo. Novas comidas e fazia o ponto de situação”, relatou o velejador que encontrou na dança, sempre que as condições o permitiam, a terapia para quebrar as rotinas e a solidão.

Ao longo de oito meses sozinho no mar, os momentos difíceis foram o outro lado da moeda. “Tive alguns, claro, mas o mais impressionante nem te posso contar. Mas quando aconteceu estava mais focado em resolver o problema. A sensação de susto aparece cinco dias depois quando estás relaxado e começas a pensar no que aconteceu e como poderias ter feito. Tens aí mais pressão do que na situação em si”, assumiu. “Estás em tensão, em constante pressão e consegui lidar. Não digo que tenha tido um momento estúpido, mas tive apagões e assustei-me”, admitiu.

Na navegação em solitário e os 360 graus de água à volta, Gugg poderia equiparar a sua vida e estado de espírito ao de um monge, embora admita que “não há muito de monge” na sua pessoa e que esta figura eclesiástica “têm outros pensamentos”, brincou. “Na mente aparecia sempre 'o que é que estou a fazer aqui'. Mas é uma vida fácil, não há horários, nem planos, olhamos pela janela e sabemos o que temos de fazer e fazemos o que temos de fazer e não necessitas de pensar muito”, considerou.

“Não foi mau de todo. Foi muito positivo, diria. Deixei as emoções de lado e habituei-me. Não entrei numa espiral negativa, nem a pensar em problemas, porque assim transformamos pequenos problemas em grandes, só porque pensas neles todos os dias. É fácil perder o controlo pelo que temos de encarar desta forma: é bom estar contente e é ok estar triste”, explicou.

Recordou privações e esforços. “Não perdi peso no geral. Perdi nos Mares do Sul, no Cabo Horn, mas recuperei logo de seguida, a norte. Não comes tanto quanto necessitas, estás demasiado ocupado com o barco e os ventos, são momentos de marés grandes e exigentes para o corpo”, atestou.

A conversa permanece a Sul. “No Pacífico temos de ir muito a sul. É duro e foi o mais difícil. E a seguir ao Cabo Horn foi o mais difícil. Fazes a viagem toda a pensar neste marco para os velejadores e quando chegas ficas com a sensação de que deste a volta ao mundo, mas ainda não (risos) e ainda temos o Atlântico”, rematou.

“Cheguei ao cabo Horn a 26 de fevereiro, fim do verão e começo do outono. E comecei a ver a dureza da meteorologia a cada dia que passa. Apanhei nevoeiro e muito vento, trovões e as duas semanas a seguir posso dizer que foram as mais difíceis. Pensas que estás em casa, mas não estás”, pormenorizou.

“Não consigo descrever as emoções quando pisei a terra”

Faz um salto no tempo até ao dia da chegada. Foi terceiro classificado e o último a completar esta regata retro que voltará em 2026. À sua espera estava o vencedor Kirsten Neuschäfer (África do Sul) e Abhilash Tomy (Índia), bem com centenas de pessoas. “Não consigo descrever as emoções quando pisei terra, um dia de várias sensações. Muita gente, conferência de imprensa, diziam-me como e quando sorrir, limitei-me a seguir a caravana. Foi muito intenso”, descreveu.

A meses de privações a solo num barco seguiu-se a simplicidade de uma casa. “A minha equipa de media arrendou-me uma casa de seis quartos para a família e amigos e tivemos um barbecue”, recordou.

Entretanto, fechado este capítulo, “vendi o barco e vou continuar a viver sem grandes planos no momento e acalmar no futuro próximo”, finalizou Michael Guggenberger.