“Nós conseguimos controlar o jogo tática e emocionalmente. Esta vitória significa entrar na competição da melhor maneira possível. No entanto, sabemos que vamos ter um jogo difícil contra o Japão. Eu garanto que toda África está a apoiar-nos. Recebo chamadas de todo o lado. Estamos orgulhosos de representar África”.

As palavras são de Aliou Cissé, treinador do Senegal, no final do encontro com a Polónia, no Estádio do Spartak, em Moscovo, após derrotar a seleção orientada por Adam Nawałka. Pela vitória na estreia, pelo modo como o conseguiu, pelas palavras que teve na conferência de imprensa de antevisão, não é nenhum descabimento anuir que será uma das peças em destaque na competição desportiva do momento. O que leva até ao Metro de Moscovo, duas horas antes do apito inicial do Polónia-Senegal.

Perto da estação de Kuznetsky Most, entrou na carruagem um adepto que, vestido a rigor, explicava aos presentes (a esmagadora maioria polacos) que o jogo de ontem não dizia respeito somente ao Senegal; era um jogo que dizia respeito e representava todo o continente africano. Mais: todo o continente estava com a equipa de Cissé. Esse adepto não ia sozinho, na verdade; consigo, ia outro amigo. Percebemos, pelas perguntas que se desencadeavam, que se tratava de um adepto do Mali e de outro dos Camarões. Um mais alto e vestido a preceito (com uma veste que continha todas as bandeiras dos países africanos em competição), outro consideravelmente mais baixo e vestido de forma mais casual. “Isto é mais do que Camarões ou Senegal. Isto é por África!”. Malianos e camaroneses eram, ali, senegaleses.

"Senegaleses" ladeados por adeptos polacos, com quem se deram irremediavelmente bem. Sem confusões, sem problemas, só futebol. “Quem é que vai ganhar? É o Se-Ne-G-a-a-a-l!”, cantavam em francês. "Polska, polska, polskaaaa!", retorquiam depois os polacos. No final, até houve troca de prendas. Uma pulseira africana para a menina polaca que falava quase em nome do grupo, uma bebida polaca para o adepto africano. Por último, a "tradicional" selfie para a posteridade.

créditos: MadreMedia

A seleção senegalesa iniciou ontem a sua segunda participação na prova mais exigente ao nível de seleções, tendo a primeira sido na Coreia e no Japão, em 2002. E nessa prova de estreia, igualou o melhor feito alcançado por uma equipa africana num Mundial. Na fase de grupos, derrotaram os campeões título, a França; seguiram-se dois empates: 1-1 com a Dinamarca e 3-3 com o Urugua, jogo em que chegaram a estar a vencer por 3-0 e que acabou por lhes carimbar a passagem à fase seguinte. Assegurado o acesso à fase a eliminar, a equipa venceu nos oitavos-de-final a Suécia com um golo de ouro aos 104 minutos do prolongamento, até ser eliminada pela Turquia nos quartos-de-final (derrota por 1-0).

Numa equipa que tinha em El Hadji Diouf a sua principal estrela, a verdade é que a peça-chave do Senegal nesse Mundial estava no meio-campo. Era lá que vivia o pulmão, o cérebro, o equilíbrio. O seu nome? Aliou Cissé. Em 2002, Cissé capitaneou os Leões de Teranga que, paralelamente ao bom resultado alcançado no Mundial, no início daquele ano tinha participado igualmente em grande estilo na CAN. Só que, embora tenham chegado à final, perdiram nos penáltis frente aos Camarões.

À época, o médio defensivo Cissé começou a mostrar os dentes em França, fazendo a sua estreia pelo Lille, antes de acumular passagens pelo Sedan, PSG e Montpellier. Depois da boa campanha realizada no Mundial de 2002, fez as malas e mudou-se para a Premier League: primeiro para o Birmingham e depois para o Portsmouth. Hoje em dia ambos são clubes caídos em desgraça e nas divisões inferiores, mas naqueles tempos tinham alguma expressão e dinheiro (especialmente o segundo). Mais tarde, regressaria a França para terminar a carreira no Nimes. Depois de pendurar a botas, juntou-se à equipa técnica do Senegal. E em 2015, com a saída do francês Alain Girèsse, Cissé assumiu o seu lugar no comando da equipa e ajudou-a a chegar aos quartos-de-final da CAN e a qualificar-se novamente para o Mundial.

O que nos leva a fazer a questão: será que 16 anos depois o talento, velocidade e inspiração de Sadio Mané e companhia vão conseguir alcançar um feito semelhante ao da equipa de 2002, neste regresso à maior competição de seleções do mundo? A julgar pela entrada de ontem, não será fácil excluir a possibilidade.

Senegal vs Uruguai
Aliou Cisse (D) disputa um lance com o avançado Gustavo Varela (E) num jogo do Mundial de 2002, disputado na Coreia/Japão. 11 de Junho de 2002.

A verdade é que começaram bem, e o Senegal conseguiu a primeira vitória africana no Mundial 2018 na Rússia após levar de vencido a Polónia, no Spartak Stadium, em Moscovo, por 2-1, a fazer lembrar a sua estreia na competição em 2002, derrotando, em Seoul, a ultrafavorita França. É verdade que a força polaca não pode ser comparada à dos Les Blues de então, mas ainda assim os Leões de Teranga não eram os favoritos a arrecadar os três pontos.

Na jornada inaugural na Rússia, tudo começou num remate de Idrissa Gueye que desviou em Cionek e deu a vantagem aos senegaleses. Depois, foi ver Mbaye Niang aproveitar a desatenção da defesa contrária e bater Wojciech Szczesny, ampliando a vantagem antes do intervalo, num golo, no mínimo, caricato. Da bancada, foi possível ver Nawaf Shukralla, o senhor do apito, a autorizar a entrada do Niang, que estava fora do campo a receber assistência médica por se ter lesionado num lance anterior. Como ainda demorou a ser assistido, foi para o pé do 4.º árbitro, na linha de meio-campo. Só que assim que recebeu a autorização para entrar, o polaco Krychowiak faz um passe mal amanhado para a defesa, quando ainda estava antes do meio de campo, sem se ter apercebido da situação do senegalês. Quem ficou apanhado ainda mais desprevenido foi o último homem, que demorou a responder ao mau passe do colega e só conseguiu seguir com os olhos o jogador africano, que conseguiu a antecipar-se ao guarda-redes e tocar a bola para o fundo da baliza. No final, o mesmo Krychowiak (um dos atores principais no caricato golo senegalês) fez o golo de honra dos polacos, num encontro em que estes nunca se encontraram nem conseguiram arranjar maneira de penetrar o compacto setor defensivo dos africanos.

Uma das principais esperanças polacas — para o jogo e para a competição — é Lewandowski. Era ele o jogador mais temível. Aquele que centrava mais atenções e que arrastou, durante os 90’ de jogo, mais que um defesa consigo. Mas a verdade é que foram poucos os passos que conseguiu dar sem que tivesse presente uma ou duas sombras atrás. Não teve espaço ou apoio e teve sempre muita dificuldade em impor o seu jogo. Fisicamente, os defesas senegaleses foram imperiais, nunca permitindo que o avançado do Bayern Munique conseguisse manipular a sua mais valia técnica. Tanto assim foi que fez o primeiro remate aos 50 minutos de jogo — e de bola parada. E se no jogo eletrónico FIFA, N'Diaye não é grande espingarda na baliza dos africanos, ontem no relvado foi seguríssimo em campo tendo feito uma belíssima defesa ao remate do avançado do Bayern de Munique.

Com esta vitória, o Senegal alcança o melhor saldo a nível de vitórias de todas as nações africanas em Mundiais: 3 em 6.

A equipa, o futuro e as possibilidades

Até agora, a decisão de ir buscar elementos da seleção com mais pergaminhos na história do país tem-se revelado acertada — é impossível negá-lo. Depois de falhar a qualificação para três mundiais seguidos com três técnicos diferentes, a caminho da Rússia não perderam qualquer jogo. E o Senegal foi uma das equipas africanas que melhor futebol apresentou durante a fase de qualificação. A equipa tem qualidade e é forte (no sentido lato e literalmente do termo). Koulibaly é esteio na defesa, Guey, N’Diaye e Kouyate consomem o meio campo e Mané e Baldé têm tudo para afinar o ataque.

Uma dos maiores atributos que se destaca no treinador Aliou Cisse é a capacidade de ter o plantel a jogar para e com ele. De acordo com a Sky Sports, no Senegal não acontece aquilo que sucede noutras turmas africanas, como é o caso do Gana e da Nigéria, seleções que tiveram problemas com treinadores locais. Ainda segundo a publicação britânica, muito do sucesso de 2002 se deve ao “trabalho de equipa”, embora também tenha tido a sua quota parte de problemas e de momentos menos positivos. Nesse sentido, cumpre relembrar o temperamento de uma das estrelas da altura, El Hadji Diouf (que mais tarde se iria transferir para o Liverpool e foi considerado Jogador Africano desse ano), que dizia aquilo que lhe ia na alma. Ora, com Cissé, o jornalista que falou com a Sky Sports não acredita que tal aconteça.

Não se sabe como será o futuro da seleção daqui para frente, mas a união parece estar me sincronia com o talento à disposição do treinador mais jovem da competição. Durante os noventa minutos foi possível perceber que é muito comunicativo com os seus jogadores e um excelente condutor de homens. Basta ver como se alinhou com alguns dos seus 23 eleitos após o juiz da partida ter apitado para o final da partida.

No entanto, se se confirmar uma boa prestação do Senegal na Rússia, como aparenta ser possível e bem ao alcance dos africanos, não será de estranhar que outras portas se abram conforme aconteceu em 2002, permitindo a Cissé pisar outros palcos. Contudo, antes que isso avance, já sabemos que se trata de um homem com um perfil descontraído, de equipa e de homens, mas que diz o que pensa. Isso bem se viu na última conferência de antevisão antes do jogo com a Polónia e no final do encontro quando abraçou os seus jogadores e equipa técnica.

“Nos países europeus, nos maiores clubes, vemos muitos jogadores africanos. Agora, precisamos de treinadores africanos para que o nosso continente evolua. Eu sou o único treinador negro neste Mundial. Mas estes são debates que realmente me perturbam. Penso que o futebol é um desporto universal e a cor da tua pele tem pouca importância”, revelou.

O Senegal voltará aos relvados no próximo domingo, dia 24, frente ao Japão, na Arena Ekaterinburg.