Termina hoje aquele que foi apelidado como o mais importante evento da história do futebol feminino. No Groupama Stadium, em Lyon, em França, país que acolheu este Campeonato do Mundo, vai jogar-se uma final inédita: de um lado uma seleção de um país que sempre relegou o futebol para segundo plano e que no futebol masculino nunca somou grandes sucessos, os Estados Unidos da América, mas que no feminino soma não um, nem dois, mas três Mundiais no palmarés, e do outro uma nação que alimentou a história do futebol no século XX e que hoje, através de escolas reconhecidas de formação de jogadores masculinos, alimenta o futebol moderno, a Holanda, que conta com um Europeu como único título conquistado com a seleção feminina que chega pela primeira vez na história a uma final de um Mundial.

Embalado por uma visibilidade sem precedentes, ilustrado pelos mais de 60.700 espectadores que bateram o recorde de assistência de um jogo entre clubes ao encherem o Wanda Matropolitano na capital espanhola para assistir ao Atlético de Madrid - FC Barcelona, e por um novo ciclo de investimento desportivo de várias ligas e clubes no futebol feminino, toda a gente esteve de olhos postos em França no último mês.

A recompensa não tardou em chegar.

Vimos Marta tornar-se na primeira pessoa, contabilizados provas masculinas e femininas, a marcar em cinco Campeonatos do Mundo e a ultrapassar Miroslav Klose como o melhor marcador de sempre em Mundiais ao atingir a marca dos 17 golos em fases finais.

Assistimos cedo a uma final antecipada entre a seleção dos França e o Brasil (2-1) e depois entre a seleção norte-americana e as anfitriãs (2-1). Vimos a Holanda atingir uma final inédita.

Mas este não é um artigo sobre os insucessos e insucessos desportivos. Mas também é sobre o que se passou dentro de campo. Não é sobre mulheres ou homens, é sobre um desporto sem género que ganhou uma dimensão tal que passou a espelhar a realidade, que passou a ser palco para a emancipação e defesa de causas, é sobre quando a realidade também calça chuteiras e vai a jogo.

Estas são as histórias pelas quais este Mundial será recordado.

O paradoxo americano: os pés têm género?

Foi no dia oito de março, dia internacional da mulher, a cerca de três meses do início do Mundial de futebol feminino em França, que os membros da seleção feminina norte-americana processaram a Federação de Futebol dos Estados Unidos, acusando a instituição de pagar salários desiguais e de oferecer piores condições de treino à equipa feminina quando comparadas com a equipa masculina.

De acordo com a ação judicial, uma comparação entre ambas as seleções mostra que, se cada uma delas disputasse 20 jogos amigáveis num ano, cada membro da seleção masculina poderia ganhar, no máximo, uma média de 263 mil e 320 dólares, enquanto as jogadoras da equipa feminina poderiam apenas ganhar, cada uma delas, um valor máximo de 99 mil dólares.

O processo mostra ainda as diferenças entre os bónus de participação nos Campeonatos do Mundo. Depois do Mundial de 2014, no Brasil, a seleção masculina dos E.U.A. recebeu 5.375 milhões de dólares, tendo sido eliminada nos oitavos-de-final, enquanto a federação pagou 1 milhão e 725 mil dólares à seleção feminina que se sagrou campeã mundial.

Recentemente, uma investigação do Guardian revelou novos números: uma jogadora pode ganhar no máximo 260 mil e 869 dólares se vencer o Mundial, já se a conquista fosse conseguida pela seleção masculina, cada jogador ganharia 1.1 milhões de dólares.

Os exemplos sucedem-se, como ilustra o trabalho do jornal inglês: neste Mundial em França, quando a seleção norte-americana passou aos quartos-de-final, cada jogador garantiu um bónus de 90 mil dólares. Se a equipa masculina chegasse a esta fase, cada jogador receberia 550 mil dólares.

Neste caso concreto, a diferença de números adquire uma dimensão anormal. Primeiro quando lemos a investigação do Wall Street Journal que mostra que desde o Mundial de 2015, a seleção feminina gerou uma receita de 50.8 milhões de dólares, enquanto a seleção masculina não passou dos 49.9 milhões de dólares. Segundo quando vemos a diferença de palmarés de ambas as equipas. A seleção feminina conquistou três Campeonatos do Mundo, quatro medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos e três Golden Cup. Já a seleção masculina soma seis Golden Cup, somando como melhor resultado num Mundinal um terceiro lugar alcançado em 1930.

Em sua defesa, a Federação norte-americana de futebol é pouco esclarecedora e põe parte da culpa na FIFA que tem bónus diferentes para o Mundial masculino e feminino. Em 2018, a conquista do Campeonato do Mundo rendeu 38 milhões de dólares à seleção francesa. Já a conquista norte-americana do mesmo torneio em 2015 valeu apenas dois milhões de dólares.

O tema percorreu toda a competição e promete seguir para além de domingo.

Marta, a melhor do mundo, quer ser reconhecida como tal. Por isso jogou sem patrocínios

Este Mundial, Marta, a melhor jogadora do mundo, vencedora de seis Bolas de Ouro, a única a marcar em cinco Campeonatos do Mundo e a melhor marcadora de sempre em Mundiais, masculinos ou femininos, rejeitou ser patrocinada por não ser paga de forma igual a um homem. Em nome da igualdade de género, a internacional brasileira jogou de chuteiras pretas.

Numa publicação nas redes sociais da página “Go Equal”, a mensagem era partilhada: “A @martavsilva10 está jogando com uma chuteira sem patrocínio esportivo e com um símbolo pela equidade no esporte. Participe do movimento #GoEqual”.

Na mesma página, noutra publicação, a “Go Equal” de Marta Silva reforçou a luta: “Bola igual. Campo igual. Regras iguais. Se as mulheres jogam futebol da mesma forma que os homens, por que elas não recebem o devido reconhecimento? O devido apoio? A devida remuneração? Igualdade é algo pelo qual devemos todas, e todos, lutar”.

A jogadora dos Orlando Pride tornou uma mera chuteira num “instrumento de manifesto”, num “protesto silencioso”, e todo o mundo a ouviu.

Cartão vermelho para Donald Trump

O presidente dos Estados Unidos da América conseguiu não ser tema no Mundial feminino ao fim dos primeiros jogos da fase a eliminar. Mas a seleção feminina norte-americana é um osso duro de roer e não se esquece que em 2015, antes de partirem para o Campeonato do Mundo, recebeu uma mensagem de incentivo de Barack Obama e este ano, de Trump, nada para além de silêncio.

Aconteceu poucos dias antes do jogo dos quartos-de-final entre os EUA e a anfitriã França, quando Megan Rapinoe, capitã da seleção norte-americana, disse que não aceitaria um eventual convite para ir à Casa Branca embora não esperasse que este sequer surgisse.

Ora, Rapinoe e Trump já se conheciam de outras lides. A jogadora foi criticada pelo presidente por no passado se ter ajoelhado durante o hino norte-americano, em solidariedade com o protesto do antigo quarterback Colin Kaepernick contra o racismo no desporto.

Nesta recente declaração, Rapinoe apelidou ainda Trump de ser “sexista”, “racista” e uma “má pessoa”. O apoio de várias companheiras de equipa não tardou a chegar. Ali Krieger, por exemplo, utilizou o Twitter para dizer que está com a sua capitã, dizendo “que há mulheres que você [Donald Trump] não consegue controlar], afirmando ainda: “Não apoio esta administração, nem a sua luta contra a comunidade LGBTQ+, imigrantes ou os mais vulneráveis”.

Se Donald Trump fosse um jogador seria aquele que assim que ouve o seu nome sair da boca do treinador, salta do banco, tira o fato de treino e começa a improvisar o aquecimento para estar pronto para entrar em campo o mais depressa possível. Também através da rede social Twitter, Trump disse ser um grande fã da equipa de futebol feminino. Defendeu-se, dizendo que acabou de fazer passar uma reforma do sistema criminal e que o desemprego entre pessoas negras é o mais baixo das histórias dos Estados Unidos. No entanto, a mensagem tinha um destinatário bem concreto: Megan Rapinoe.

“A Megan devia ganhar antes de falar! Terminem o trabalho!”, escreveu. Num outro tweet, o presidente acrescentou ainda que a equipa norte-americana estava convidada a ir à Casa Branca, quer vença ou perca o Mundial, antes de voltar, novamente, a dirigir-se a Megan: “Megan não deve desrespeitar o país, a Casa Branca ou a bandeira, especialmente desde que tanto tem sido feito por ela e pela equipa”.

No jogo frente a França, Rapinoe não cantou o hino, nem colocou a mão sobre o coração. Depois do jogo aceitou o convite da congressista democrata Alexandria Ocaso Cortez para uma visita à Câmara dos Representantes.

Elas não mostram o dedo do meio, puxam do batom

Que aparência deve ter uma jogadora de futebol? A pergunta soa disparatada, mas é um disparate que as atletas sentem na pele. Umas vezes acusadas de terem uma aparência demasiado masculina, outras por entrarem em campo demasiado femininas, este Mundial bateu o pé a preconceitos e cada atleta procurou entrar em campo da forma que mais se sentia confortável.

A aparência da holandesa Shanice van de Sanden terá saltado à vista de todos: cabelo rapado com um padrão leopardo e batom nos lábios. “Eu nunca vou jogar um jogo sem o meu batom. Deixa-me mais confortável”, disse a internacional ao New York Times.

No mesmo artigo do jornal norte-americano, a autora atira-se para uma reflexão que tem pouco de disparatada, colocando lado a lado as aparências excêntricas no futebol masculino e feminino: “Para algumas jogadoras, a decisão de usar maquilhagem ou de pintar o cabelo, não tem nada a ver com querer parecer mais ou menos femininas - é uma forma de se destacarem e de se promoverem”. Tal como os atletas masculinos.

Abaixo fica uma galeria que é, mais do que a afirmação de um género, a afirmação individual, do batom de Marta ao cabelo de Megan: