Qualquer criança que goste de futebol chega à idade adulta e tem na sua lista de “coisas a fazer”, por exemplo, marcar presença num determinado número de estádios míticos, ver jogos que valem por uma vida, ver a equipa pela a qual nutrem uma especial ligação, chegar “àquele momento” em que entra na galeria dos heróis ao erguer a taça mais almejada e, por fim, estar ao lado de adeptos que aprendemos a admirar.

No Dia Mundial da Criança, muitas serão aquelas que vão guardar para todo o sempre este dia. E muitos adultos devem, hoje, sentir-se verdadeiras crianças na hora dos festejo.

A final da Liga dos Campeões, edição 2018-2019, o “tal” jogo em que sonhamos estar — pelo menos uma vez na vida — presentes, tinha alguns dos ingredientes que fazem deste desporto algo de especial. Pelo menos, havia a garantia de uma equipa a que ninguém fica indiferente, muito antes pelo contrário — sempre acompanhada por uma legião de adeptos que poucos se orgulham de ter e muitos querem ter.

Falamos do Liverpool FC, clube fundado em 1892, uma equipa que mora em Anfield Road, um dos míticos estádios mundiais (a par, por exemplo, do La Bombonera [Boca Juniors], ou Westfalenstadion, estádio do Dortmund, batizado de Signal Iduna Park), em cuja kop mora os “melhores adeptos” do mundo com a música mais arrepiante que nos leva a cantarolar cada vez que a equipa da cidade dos Beatles entra em campo: "You'll Never Walk Alone" (YNWA) que está no escudo do clube e no portão de entrada do Anfield.

O estádio Wanda Metropolitano, em Madrid, inaugurado há dois anos, ainda não tem idade e estatuto para ser mítico, mas ficará, a partir de hoje, no coração dos adeptos dos Reds que ali conquistaram a sexta Liga dos Campeões/Taça dos Clubes Campeões Europeus, em nove finais disputadas, depois de terem perdido as duas últimas (2006-2007 e 2017-2018).

Um dado de não somenos importância e que apimentava esta final que tinha um estreante, Tottenham Hotspur FC, nestes 90 minutos especais. O jogo colocava frente a frente os dois treinadores que despertam mais paixões da atualidade: Mauricio Pochettino e Jurgen Klopp. Além de estrelas como Kane, Salah, Mane, Deli Ali, Alisson...

Golo precoce e uma senhora a entrar em campo. Sem sorrisos

A noite era de festa. Sim. Era, foi e será sempre. Mas, ao contrário de todas as outras finais em que a gritaria inicial de apoio às duas equipas surge como o “disco mais pedido” de uma qualquer emissora de rádio, esta começou com um minuto de silêncio em memória de José Antonio Reyes, 35 anos, que morreu num acidente de viação. A tribo do futebol mostrou que, quando é chamada, sabe estar.

Por mera curiosidade, Reyes, que nunca venceu uma Champions League, ergueu, por cinco vezes, a Liga Europa, três ao serviço do Sevilha, então treinada por Unai Emery, hoje no Arsenal, substituindo o francês Arséne Wenger, treinador com o qual o extremo-esquerdo foi campeão inglês (sem derrotas), e duas com a camisola do Atlético de Madrid, quando os colchoneros moravam no Vicente Caldéron.

O apito de Damir Skomina punha para trás as memórias e arrastou os olhos de todos para o tempo presente da 64.ª edição da Liga dos Campeões da UEFA.

E muitos dos adeptos — que soltavam o ar dos pulmões após estarem calados 60 segundos — ainda não se tinham sentado quando Van Dijk, o central holandês do Liverpool, num pontapé para a frente, levou a bola até à biqueira de Mané. A redondinha ficou colada, o avançado fez uma pausa, deu uma meia-volta em velocidade acelerada e centrou. Um frame de segundos depois, Sissoko, médio defensivo dos Spurs, que parecia estar de braços abertos de espanto, impediu, com a mão que tinha mais perto de si, que a bola seguisse a sua trajetória, diríamos normal.

Decorriam 22 segundos. O árbitro esloveno apontou de imediato com um braço para a marca de 11 metros, enquanto a outra mão era elevada ao auricular para ouvir o que o VAR lhe ia transmitindo.

O recorde de penalidade mais rápida em finais da Liga dos Campeões ninguém tira ao Liverpool. Mas fruto das conversas tidas entre o chefe da equipa da arbitragem, com quem vê o lance em câmara lenta, e com o Loris, guarda-redes do Totenham — a tal posição que sofre sempre, nesses instantes, momentos de aperto emocional quando se alinha na linha de baliza — o disparo de Salah, com o pé esquerdo terminou nas redes aos dois minutos. GOLO!

Um momento mágico que fica no top 3 dos golos mais rápidos. Para encontrarmos mais rápido é preciso recuar a 2005, quando Paolo Maldini, aos 50 segundos, colocou o Milan em vantagem diante o ... Liverpool, que, no entanto, viria a ser feliz nas penalidades (3-3 após prolongamento) e a somar, então, a quinta Liga/Taça dos Campeões.

À loucura nas bancadas, Klopp respondeu, inesperadamente, com um ar sisudo. Talvez tenha ocorrido ao pensamento do treinador as duas finais perdidas, no ano passado, ao serviço dos Reds e em 2013, quando treinava o Borrusia de Dortmund, a última equipa, até hoje, que tinha convertido uma grande penalidade no tempo regulamentar da final da Liga dos Campeões, diante o Bayern Munique, que viria a sair triunfante.

E o ar sisudo e ausência de sorriso manteve-se no campeão das finais perdidas mesmo quando uma adepta entrou em campo. Com a ausência de repetição por parte da transmissão, só deu para vislumbrar que era loura e estava trajada com pouco traje (preto).

Aos 36 minutos de jogo, as estatísticas da UEFA apresentavam 65% de posse de bola para os Spurs, 35% para o Liverpool. Uma tónica que se manteve durante os 90+5. A equipa londrina tinha mais bola, criava mais perigo e rematava mais. Muito mais.

Do lado oposto morou um 11 expetante, que jogou, quase sempre, no contra-ataque. Num desses momentos, Robertson fez uma cavalgada e obrigou o dono da baliza do Tottenham a uma defesa, uma das poucas que fez.

Heróis das meias-finais entram em campo. Um ajudou a escrever a história. O outro chorou

Depois de uma 1.ª parte escassa em oportunidades de golo, os segundos 45 minutos trouxeram o sal do futebol: os remates à baliza.

Aos 58’, o técnico do Liverpool mexe nos números que ocupam o campo embora sem mexer na geometria no retângulo. Sai Firmino e entra Origi para a linha da frente. Se bem se recordam, o avançado belga foi um dos heróis da meia-final na “remontada” em Anfield diante o Barcelona. Nem 10 minutos depois, Pochethino decide imitar o seu colega. Mete também ele um herói da meias (hat-trik em Amesterdão), o brasileiro Lucas Moura, para o lugar de Harry Winks.

Mané meteu da 2.ª até à 5.ª mudança, passou a bola a James Milner, que tinha, entretanto, entrado, e este tirou tinta ao poste da baliza de Loris. Foi a partir de então que a formação dos Spurs acordou. E Alisson, guarda-redes do Liverpool, também.

Numa jogada a três – Kane, Son e Dele Ali,  por esta ordem —, o internacional inglês picou a bola, mas, apesar da sensação de golo, morreu nas mãos de Allison. Mãos que pararam, por duas vezes na mesma jogada, um remate do coreano Son e uma recarga de Lucas. Pouco tempo depois desviou a bola que veio de um livre do melhor jogador dinamarquês da atualidade, Eriksen.

Olhávamos para o que se passava no campo e talvez o empate fosse, na altura, o resultado mais justo. Mas, no futebol, o que interessa é aquilo que se escreve na ficha de jogo. Em contra corrente, Origi, o tal herói de Anfield, aproveitou uma bola que lhe chegou aos pés e, com o pé esquerdo, colocou o resultado em 2-0.

Jurgen Klopp, esboçou um gesto de alegria. E de alívio logo após mais uma defesa de Alisson a, mais um, remate de Son.

O YNWA ouvia-se no estádio. Sentia-se nas bancadas. Cinco minutos depois dos noventa, o tal homem de fortes convicções de esquerda festejou a vitória proporcionada por dois pés esquerdos.

As imagens na televisão mostravam crianças a chorar de alegria enquanto Lucas Moura chorava, também ele, como uma, embora fossem lágrimas de tristeza, jogadores e público a necessitarem de duas mãos para mostrar o que sentiam com a sexta Liga dos Campeões/Taça dos Campeões Europeus. E Klopp a sorrir, como um bebé que recebe o melhor presente do mundo, depois de, por duas vezes, não ter conseguido desembrulhar a taça.

Por fim, posso confidenciar, que também eu fui, hoje, uma criança feliz. É que sou um apaixonado do Liverpool desde pequeno. E sempre tive o sonho de ir a Anfield e/ou ver os Reds ao vivo e a cores. Mas isso ainda está por cumprir.