A descontração da tripulação do “Maresia” contrasta com o cenário dantesco que lhe é apresentado. São 12:55 e faltam cinco minutos para a largada da regata Angra Bay Cup 8 aos Ilhéus, uma das mais prestigiadas competições de vela no arquipélago dos Açores, organizada pelo Angra Iate Clube. O aproximar da hora de largada inspira cuidados como preparar as velas e avaliar o vento. Mas há um corpo estranho no barco que lhes desvia as atenções.
Ao leme da embarcação está José Gonçalves. Topógrafo de profissão, o “skipper” (capitão) do “Maresia” conta com 57 anos e já tem a vela como paixão desde os 11, tendo participado em 20 edições desta prova. Com ele encontram-se a sua filha Alexandra Gonçalves e o seu amigo Ernesto Jorge. Aos três calhou a sorte de trazer um jornalista com eles a bordo para relatar in loco como é participar nesta já histórica prova. Só que em vez do dito repórter se encontrar pronto a trabalhar e cheio de perguntas para fazer, está numa triste figura a pingar da cabeça aos pés.
Para explicar esta situação é necessário recuar 10 minutos. A crónica de viagem do veleiro “Maresia” em circum-navegação aos dois ilhéus que se encontram ao largo de Angra do Heroísmo — o das Cabras e o dos Fradinhos, sendo que o objetivo de contorná-los dá ao percurso a sua forma de “8” — começou com um clássico da história trágico marítima. “Homem ao mar!” A mochila ainda sobe a bordo, mas o seu dono não. Uma manobra de equilibrismo infortunada leva este que vos escreve a fazer um mergulho pouco artístico quando estava a tentar subir para a embarcação a partir de um bote semirrígido.
Ao fim de uma série de tentativas, lá se sobe para a embarcação, de roupa ensopada e pertences nos bolsos. O caso não é grave. O importante agora é ter tudo a postos porque se está prestes a dar a largada, feita a partir de uma linha entre o pontão do Porto das Pipas e uma boia colocada na baía de Angra. Ultrapassada que está a estranheza em ter um sujeito encharcado a bordo, fazem-se as apresentações, a tripulação ultima os preparativos e, às 13:00 em ponto, tem início a regata.
Mal é dado o sinal, de imediato se forma um pelotão da frente. Em terra, há quem observe com solenidade as sinuosas trajetórias das embarcações. Em cada rosto há um apreço pela arte do leme, mesmo que nele nunca se tenha colocado as mãos. Mas não é aqui que se encontram os melhores lugares da casa para ver a regata. Esses são reservados às cagarras e às gaivotas, flutuando impávidas à passagem dos veleiros.
Rapidamente se começam a definir os líderes da regata. Apesar de esta ser uma prova pautada pela amizade que une os concorrentes, há quem queira vencê-la como se fosse a última vez que pudesse vir a velejar. Prova disso, explica José, é que alguns dos barcos mais rápidos vão na frente porque os seus tripulantes chegam mesmo a retirar tudo o que consideram supérfluo na embarcação — de portas a colchões —, pois cada grama conta quando é de velocidade que se trata.
Esse, no entanto, está longe de ser o intuito daquela tripulação. Ao leme, “o skipper” diz entre risos que ali “compete-se em velocidade cruzeiro, o suficiente para beber uma cervejinha”. As minis abertas comprovam-no, a serenidade na forma como está a conduzir os destinos do “Maresia” também.
Ao contornar o primeiro dos ilhéus, o veleiro já se encontra longe dos primeiros lugares, algo que pouco incomoda os três marinheiros. É então que Ernesto revela que o barco não é de nenhum deles, mas de um amigo que não pôde vir velejar, deixando patente que esta súbita disponibilidade do “Maresia” foi uma oportunidade para simplesmente virem desfrutar do mar. O vento vai a favor, o sol brilha, é bom estar a navegar. Quando se passa por outro barco, os tripulantes gritam umas picardias entre si em tom de brincadeira. Aqui são todos amigos, na vitória e na derrota.
Essa vontade de navegar, aliás, está demonstrada na forma como aqui chegaram. A história do “Maresia” nesta edição da Angra Bay Cup até começa noutra competição. Dois dias antes do 8 aos Ilhéus, os três tripulantes soltaram amarras da ilha do Faial, de onde são naturais, disputando a Regata das Sanjoaninas, criada no âmbito das grandes festas populares da ilha Terceira e, em especial, em Angra do Heroísmo, destino final dessa prova. Conta Ernesto que a largada se deu às nove da manhã de quinta-feira, 20 de junho, e que a travessia de 70 milhas demorou quase 21 horas, chegando ao Porto das Pipas às seis da manhã de sexta-feira. Para isso contribuiu a ausência de vento durante a passagem de um dia para o outro, que os deixou várias horas apenas a navegar ao sabor da corrente, até obterem a dádiva do vento outra vez às quatro da manhã. O mesmo caminho está-lhes reservado para a volta, abandonando Angra à uma da manhã deste domingo, dia 23, para chegar a casa pelas três da tarde. Costuma dizer-se que quem corre por gosto não cansa, mas aqui substitua-se “correr” por “navegar”.
A descontração, porém, vai sendo intercalada com momentos de grande agitação dentro do barco. É que os elementos naturais não pedem “com licença” quando chegam, apenas se fazem sentir, e cada vez que o vento se põe com as suas, lá vai a equipa seguir uma série de movimentos frenéticos. “Caça” cabo, “folga” cabo, vira leme, dá à manivela, aperta nós e desprende outros tantos, sempre com o intuito de fazer dos sopros aliados para a travessia. Também isto significa que quem observa este espetáculo de coordenação tem de fazer o máximo para não ser um empecilho, nem para ser atingido pela retranca do veleiro, tendo de mudar de lugar periodicamente enquanto se tenta escrevinhar tudo sem deixar o caderno tocar nas calças ensopadas.
Com o contorno pelo ilhéu dos Fradinhos, termina-se a primeira parte da viagem. Porém, agora é que vem a parte complicada na volta. Outrora um impulsionador enérgico, o vento vergasta agora contra as velas em sucessivas rajadas, sendo necessário navegar à bolina para contrariá-lo. Agora diminui-se o espaço para minis ou amena cavaqueira, o ambiente presta-se à concentração e há que ler os sinais em redor, pois o mar é para respeitar e o barco chega a assumir inclinações de 45º, criando um sentimento vertiginoso.
Apesar de ser uma parte da viagem mais complicada, José, Alexandra e Ernesto vão desdobrando-se em esforços, para contrariar o vento, que está a subir de intensidade e a pregar uma ou duas surpresas. “Começa o meu martírio”, desabafa José. Sendo o “Maresia” um veleiro de cruzeiro, não tem popa para furar contra a ondulação que se proteja contrária ao barco, com cada pancada a fazer a embarcação perder velocidade. É por isso que esta começa a fazer curvas mais expansivas para tentar aproveitar o vento e evitar as ondas. Direita, esquerda, direita, esquerda, finalmente chega-se à linha de chegada. Não se sabe em que lugar ficaram, nem tampouco isso lhes interessa. Chegados ao porto, é hora de estacionar e preparar para o jantar que vai acompanhar a entrega de prémios.
No evento, conduzido no terraço do restaurante Cais de Angra, os três juntam-se à mulher e filha de Ernesto. A boa disposição reina. Não recebem nenhum dos prémios, senão aquele que já tiveram por desfrutar do fragor marítimo. Durante a cerimónia, entre as várias distinções é dado o Troféu "Mariazinha", criado em nome de um dos mais acarinhados barcos da competição para destacar o espírito de diversão e camaradagem. Nisto, José recorda que uma das mais insólitas memórias que tem da vela foi quando participava na tripulação desse mesmo barco quando, em 2004, durante uma regata Horta-Angra, a embarcação tombou e o mastro ficou deitado na água.
A esse episódio incomum terá certamente outro para recordar depois desta edição do Angra Bay Cup, quando um jornalista lhe apareceu no barco a pingar água salgada. Quem vai a uma regata à procura de momentos para recordar, arrisca-se a criar alguns para os outros.
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