Césped, portería, pelota. E também partido, delantero, pase, tarjeta e – se tudo correr pelo melhor ao longo de 90 minutos – golazo. Todas estas palavras irão, ao longo das próximas semanas, regressar ao vocabulário e ao dia-a-dia espanhóis, de Ayamonte à Corunha, de Badajoz a Girona, sem descurar, naturalmente, os milhões e milhões de fãs que a La Liga tem por todo o globo. Pouco mais de três meses depois, eis o regresso de um dos poucos campeonatos à parte. Para muitos, é o melhor do mundo. Para outros, o segundo melhor, perdendo apenas para a inglesa Premier League. E, para um número reduzido, é aquela coisa chata que acaba quase sempre nas mãos do Real Madrid ou do Barcelona.

É conhecida por La Liga, ou a Liga, com o artigo definido colocando-a simbolicamente num outro patamar. O vírus travou o futebol em quase todo o mundo, sobrando apenas Burundi e Bielorússia para matar saudades ao longo do período de confinamento. Aquando desta paragem forçada, a 8 de março, data em que terminou a 27ª jornada do campeonato (ainda se realizou, a 10 do mesmo mês, um jogo em atraso da 24ª que opôs o Eibar à Real Sociedad: 1-2 para os visitantes), a incerteza voltou a estar na ordem do dia futebolístico espanhol: o Real Madrid perdeu em Sevilha, frente ao Bétis, o ponto de liderança que detinha sobre o Barcelona (2-1 para a equipa de William Carvalho; o Barça derrotou a Real Sociedad por 1-0).

À incerteza em relação ao vencedor final juntar-se-ão agora várias outras, que também pairam por toda e qualquer nação onde o desporto-rei faça jus a este seu cognome. Poderá o futebol resistir a quase três meses de paragem? Qual o grau de prejuízo – material, emocional – provocado pela covid-19? Será seguro, para um futebolista, voltar a pisar um relvado? Se um desporto se realizar na floresta e não estiver lá um adepto para o ver, será que produz som? Et cætera, et cætera...

Temos de temer o medo

A covid-19 atingiu todas as classes sociais e todas as profissões, e os futebolistas não foram exceção. Entre os casos mais sonantes estão dois jogadores que passaram pelo campeonato português: Garay, ex-Benfica, e Mangala, ex-FC Porto. Em março, seis jogadores do Espanyol, de Barcelona, também se encontravam infetados. E, a 10 de maio, foi revelado que o vírus havia infetado cinco jogadores da primeira e da segunda divisão espanholas, entre eles Lodi, defesa do Atlético de Madrid, Yangel Herrera, do Granada, e Remiro, guarda-redes da Real Sociedad; dois outros casos foram detetados no Bétis de Sevilha, todos entretanto recuperados.

A poucos dias do (re)arranque da La Liga, já se sabia também que o árbitro assistente César Font não irá voltar esta época aos relvados. Cirurgião plástico de profissão, Font é um caso de risco, visto ter uma maior possibilidade de se contagiar e, por conseguinte, contagiar os demais com o novo coronavírus. “Foi uma decisão muito difícil”, anunciou, num vídeo publicado pela clínica Noval, onde trabalha. “[Mas] entendemos que, tanto no que toca aos meus pacientes como ao futebol, é melhor adiar a [minha] atividade na La Liga para daqui a uns meses ou para a próxima temporada”.

O receio de Font não é infundado, ainda para mais num dos países onde a covid-19 mais danos provocou: até ao dia 8 de junho, tinham sido confirmados mais de 240 mil casos de infeção, e mais de 27 mil mortes. E onde um dos principais focos de infeção até foi um jogo de futebol, o que confere um outro grau psicológico a este regresso: o Atalanta-Valência, para os oitavos-de-final da Liga dos Campeões, disputado a 19 de fevereiro.

Nesse jogo, disputado em San Siro (Milão), estiveram presentes 40 mil pessoas numa altura em que o vírus ainda não tinha sido detetado em Itália (o primeiro paciente foi identificado a 23 do mesmo mês), e estima-se que boa parte delas tenha sido apanhada pela doença. Bérgamo, cidade natal da equipa da Atalanta, transformar-se-ia mais tarde numa das regiões mais afetadas pelo novo coronavírus.

O presidente da câmara local, Giorgio Gori, referiu-se ao jogo em questão como “uma bomba biológica”... E ainda se disputou uma segunda mão, a 10 de março, em Espanha (este à porta fechada), sabendo-se hoje que o treinador da equipa italiana, Gian Piero Gasperini, apresentava à altura sintomas da covid-19. "No dia antes do jogo estava doente, na tarde do jogo ainda pior", revelou o técnico de 62 anos à Gazzetta Dello Sport. A presença de Gasperini no estádio já foi caracterizada pelo Valência como "uma irresponsabilidade", e o resultado dos jogos (vitórias da Atalanta, por 4-1 em Itália e por 4-3 em Espanha) deixaram de ser o que mais importa.

Que não se menospreze, por isso, o medo – o mesmo citado pelos jogadores do Eibar, no início de maio, quando os planos para o regresso da La Liga já estavam a ser traçados. Em declarações ao jornal Marca, o psicólogo desportivo David Llopis lançou o repto. "Há uma série de crenças, que dizem respeito aos desportistas de alto rendimento, que têm de ser revistas", afirmou. "É certo que geralmente possuem uma força física e mental importantes mas, como qualquer pessoa, têm os seus pensamentos e as suas emoções, as suas dúvidas, as suas inseguranças, as suas preocupações em relação à vida e às circunstâncias sociais e familiares".

Quer isto dizer que os jogadores de futebol não são máquinas, independentemente dos seus feitos, ou elementos imunes ao vírus, independentemente do quão recheada estiver a sua conta bancária. E que terão muito em que pensar quando o mote social é o da distância – um, dois metros – e a sua profissão exige contacto – puxões, rasteiras, marcações. Os abraços nos festejos de um golo terão de ser repensados, bem como os cumprimentos entre amigos e colegas. E uma paragem tão longa remete para outro problema, capaz também de afetar psicologicamente um jogador de futebol: o das lesões.

La Liga
Diego Simeone, treinador do Atlético de Madrid, de máscara cirúrgica durante uma sessão de treinos da sua equipa créditos: EPA/ATLETICO MADRID

Via aberta para lesões?

A liga alemã, que das grandes ligas europeias foi a primeira a regressar (a 16 de maio), acabou por agir como uma espécie de laboratório para as demais, no sentido de se tentar perceber como é que um atleta de alta competição reage a uma paragem forçada, sob o stress de não poder sair de casa e sem treinos conjuntos. A resposta não foi catastrófica, mas é um sinal de alarme: logo na primeira jornada de regresso, a Bundesliga acabou com oito jogadores lesionados, sete deles com lesões musculares.

Semana e meia antes, o jornal As publicou uma nota interna do departamento médico do Barcelona, onde grassava a preocupação com a saúde dos jogadores neste seu regresso à competição. O cenário mais otimista fazia referência a um número de lesões no plantel entre cinco a dez, no primeiro mês de jogos. E, três semanas após o regresso aos treinos, já se registavam 28 lesões em todas as equipas da La Liga: 19 musculares e 9 traumáticas, entre elas as de estrelas como Umtiti, Ansu Fati (Barcelona) e Isco (Real Madrid) e os portugueses João Félix (Atlético) e William Carvalho (Bétis).

A precaução estará, por isso, na ordem do dia. Com tantos jogos marcados para tão pouco tempo, o pesadelo, na forma de uma hecatombe de lesões, poderá tornar-se realidade. O Ministro da Saúde espanhol, Salvador Illa, reuniu-se no início de junho, por videoconferência, com jogadores de quatro das equipas da La Liga (Carvajal – Real Madrid, Piqué – Barcelona, Koke – Atlético e Illarramendi – Real Sociedad), para lhes garantir que este será um regresso seguro. Mas ouviu queixas, principalmente da parte do defesa catalão, que insistiu na necessidade de aumentar a janela de tempo antes de se voltar à competição, algo que já havia dito a Javier Tebas, Presidente da Liga Espanhola de Futebol.

Tebas tem-se mostrado o principal arquiteto do regresso à normalidade no futebol espanhol, mas o seu trabalho não tem sido, naturalmente, fácil. Ainda antes de ser cancelada a competição, o Presidente da Liga mostrou-se disposto a terminá-la sem público nos estádios o que, com o avanço da pandemia, se tornou insustentável. Mais tarde, anunciou a contratação de um serviço privado que oferecia a todos os clubes profissionais a possibilidade de realizarem testes à covid-19. E depois, começaram os avanços e recuos: regresso da Liga no final de abril, regresso em maio, regresso no início de junho, e a data final: 11 de junho.

"A primeira e a segunda divisão vão terminar ao mesmo tempo. Haverá futebol todos os dias durante 35 dias", afirmou o Presidente ao programa El Partidazo, em maio. A “avalanche” terá início já hoje, e deverá durar até ao dia 19 de julho. Fora deste plano estão as ligas semi-profissionais e amadoras, e só um torneio para definir quem subirá da Segunda Divisão B à Segunda Divisão será disputado, a partir do dia 18 do mesmo mês; as despromoções foram suspensas. Garantida está também uma medida avançada pela FIFA e adotada por várias ligas, que permitirá aos treinadores realizar até cinco substituições por jogo, de forma a preservar os atletas.

La Liga
O primeiro derby de Sevilha desta época, realizado a 10 de novembro de 2019 créditos: EPA/RAUL CARO

Um derby insosso

Porém, nem o sol abrasador que ilumina a cidade de Sevilha deverá aquecer os ânimos dos adeptos das duas equipas que inaugurarão hoje a 2ª parte da La Liga 2019/20: o Sevilha FC e o Bétis (às 21h, em Portugal continental). Em situações normais, um derby desta envergadura traria à tona toda a paixão, toda a rivalidade e toda a ganância de ganhar que costuma existir neste género de disputas, mas o contexto da pandemia quebrou os ânimos. Fãs e fanáticos não poderão estar no estádio a puxar pelos seus, e mesmo quem veja em casa, pela televisão, terá de escolher entre a tristeza de um som de fundo em que só os gritos dos treinadores e jogadores se erguem no éter e a ignomínia de ter acesso a um coro de adeptos virtual, algo que contradiz o próprio espírito humano e social do futebol. Quase como ter de escolher entre beber uma cerveja morta ou uma sem álcool.

O Sevilha parte para o jogo em posição privilegiada (3º lugar na Liga, com o Bétis em 12º), mas com a nova desvantagem de saber que o “fator casa” já não serve para nada. A equipa foi alvo de vasta polémica em Espanha, durante a pandemia: quatro dos seus jogadores – Lucas Ocampos, Franco Vázquez, Luuk de Jong e Éver Banega – foram apanhados a furar a quarentena, a 24 de maio, com uma fotografia de todos eles, num almoço com mais de 10 pessoas (o que era proibido), a circular pelas redes sociais e a merecer veemente condenação. "Só podemos pedir desculpa ao clube, aos colegas, ao corpo técnico e à sociedade em geral", declararam.

Jogos (28ª jornada)

11 de junho
Sevilha x Bétis (21h00, Eleven Sports 1)

12 de junho
Granada x Getafe (18h30, Eleven Sports 1)
Valencia x Levante (21h00, Eleven Sports 1)

13 de junho
Espanyol x Alavés (13h00, Eleven Sports 2)
Celta de Vigo x Villarreal (16h00, Eleven Sports 2)
Leganés x Valladolid (18h30, Eleven Sports 2)
Mallorca x Barcelona (21h00, Eleven Sports 1)

14 de junho
Athletic x Atlético Madrid (13h00, Eleven Sports 1)
Real Madrid x Eibar (18h30, Eleven Sports 1)
Real Sociedad x Osasuna (21h00, Eleven Sports 1)

Este será o último derby de Banega, que rumará à Arábia Saudita no final da temporada, após três anos em Sevilha. É um jogo onde se fará um minuto de silêncio pelas vítimas da pandemia, como tem sido feito noutros estádios. E é um jogo que o ex-FC Porto Julen Lopetegui, atual treinador do Sevilha FC, encara – apesar de tudo – como "único, especial e diferente". "É um dos derbys mais intensos e apaixonantes do mundo", declarou ao El Partidazo. O facto de ser o primeiro jogo pós-quarentena, em Espanha, e de, por isso, vir a ter uma maior atenção mediática, também não lhe fugiu ao pensamento, bem como o esforço a que os jogadores estarão sujeitos e a ausência de adeptos. "Temos consciência daquilo que este jogo significa", acrescentou.

O rival Bétis tem mais a ganhar com este jogo, já que tem feito uma temporada assaz dececionante; previa-se que o clube estivesse numa posição mais respeitosa, mas somou apenas 33 pontos em 27 jogos – e ainda foi eliminado da Taça do Rei pelo Rayo Vallecano, da Segunda Divisão. A qualificação para as provas europeias, um objetivo do Bétis no início da temporada, está a tornar-se cada vez mais impossível (12 pontos separam a equipa do 6º lugar, o último que dá acesso às competições da UEFA). A vitória sobre o Real Madrid antes da suspensão do campeonato poderá ser um bálsamo mental, contudo – e Lorenzo Ferrer, ex-treinador da equipa, afirmou à rádio Canal Sur que o desfecho final do jogo é "incerto". "Não seria a primeira vez que o Bétis ganharia este jogo", garantiu.

Campeonatos dentro do campeonato

Quaisquer vitórias terão de ter invariavelmente um asterisco a seu lado, pois a pergunta permanecerá: teria este resultado sido diferente sem pandemia? O mesmo é válido para quem quer que ganhe a La Liga, que neste momento é disputada sobretudo pelo Barcelona (1º lugar, 58 pontos) e pelo Real Madrid (2º lugar, 56 pontos), como que para conferir um certo grau de normalidade a um campeonato que tem sido conquistado quase sempre por uma ou outra equipa: desde o início do milénio, só Valência (por duas vezes) e Atlético (em 2014) quebraram a hegemonia dos “eternos rivais”.

Classificação

  1. Barcelona - 58 pts
  2. Real Madrid - 56 pts
  3. Sevilla - 47 pts
  4. Getafe - 46 pts
  5. Real Sociedad - 46 pts
  6. Atlético Madrid - 45 pts
  7. Valencia - 42 pts
  8. Villarreal - 38 pts
  9. Granada - 38 pts
  10. Athletic - 37 pts
  11. Osasuna - 34 pts
  12. Real Betis - 33 pts
  13. Levante - 33 pts
  14. Alavés - 32 pts
  15. Valladolid - 29 pts
  16. Eibar - 27 pts
  17. Celta de Vigo - 26 pts
  18. Mallorca - 25 pts
  19. Leganés - 23 pts
  20. Espanyol - 20 pts

No regresso à competição, nem uma nem outra deverão – à partida – ter grandes problemas em superar os seus adversários. Os catalães deslocam-se a Maiorca para defrontar o 18º classificado da Liga, ao passo que o Real recebe o Eibar, 16º classificado, mas as certezas foram enterradas com a pandemia. Com 11 jogos por disputar e com esse mesmo número de pontos de distância do segundo classificado, o Sevilha pode, por exemplo, dar-se ao luxo de acreditar num milagre, que seria sinónimo de uma sucessão de deslizes fatais de um e outro colosso... E há vários jogos até ao final onde a possibilidade de isso acontecer aumenta. A saber: Real Madrid-Valência (29ª jornada, 18 de junho), Sevilha-Barcelona (30ª, 19), Real Sociedad-Real Madrid (idem, 21), Real Madrid-Getafe (33ª, por definir), Barcelona-Atlético (idem), Villarreal-Barcelona (34ª, por definir), Athletic-Real Madrid (idem).

Se a disputa pelo título de campeão poderá não revelar quaisquer surpresas, o mesmo não é válido para a disputa por um lugar na Liga dos Campeões. O Sevilha é um crónico candidato a este posto, mas este ano conta com a presença de concorrentes inesperados: a Real Sociedad, que segue em 4º lugar, e o Getafe, em 5º, ambos com 46 pontos – menos um que a equipa andaluz. Outro dos crónicos candidatos, o Atlético, está em 6º lugar com 45 pontos; e o Valência está à espreita, com 42. O lote de equipas que lutam não pela Liga dos Campeões, mas pela Liga Europa, é apenas ligeiramente mais alargado, com Villarreal (38 pontos), Granada (idem) e Athletic (37 pontos) a fecharem o top 10.

A despromoção parece ser quase o destino certo do Espanyol, que não conseguiu mais fazer que 20 pontos em 27 jogos: está em último lugar, a 6 pontos da salvação. Ter sido um dos clubes mais afetados pela covid-19 também não ajuda; David López, médio defensivo da equipa, fez saber isso mesmo numa conferência de imprensa através da internet, no final de maio. “Estes foram meses de muita incerteza”, salientou, acrescentando que, na sua opinião, a competição foi "desvirtuada" e reconhecendo que os colegas infetados não se encontram ao mesmo nível físico que o restante grupo.

Porém, López não baixa os braços. "Temos pela frente um campeonato com 11 jogos. Houve um reset que nos pode beneficiar", disse. A tarefa, assaz complicada, de continuar na Primeira Divisão começa no sábado, frente ao Alavés. O Leganés (17º, 23 pontos) e o supracitado Maiorca (25 pontos) são as outras duas equipas em risco de descida, sendo que o histórico Celta de Vigo (16º) está apenas um ponto acima da linha de água, atrás de Eibar (27 pontos) e Valladolid (29).

La Liga
No estádio Martinez Valero, em Elche, os funcionários do Elche CF estão a colocar figuras de cartão dos adeptos do clube nos lugares. créditos: EPA/MANUEL LORENZO

Sem adeptos, sem alma?

É óbvio que os intervenientes humanos no jogo são os mais afetados pela pandemia. Mas há também que dar destaque aos locais onde a ação decorre: o verde dos campos de futebol. Sem manutenção adequada e sob o calor do verão, acrescentando a isso o facto de receberem tantos jogos em tão pouco tempo, os relvados espanhóis poderão também tornar-se num foco de preocupação – até porque um campo em mau estado leva a lesões. A Royalverd, empresa responsável pela instalação e manutenção dos campos do Leganés, Barcelona e Atlético reconhece que terá um trabalho difícil pela frente, mas garante estar preparada.

"No verão não poderemos fazer o habitual: tirar os relvados e plantar outros", explicou Eric Durán, responsável pela Royalverd em Madrid. “Tivemos de fazer um trabalho mais agressivo, para preparar os campos de forma a que estes se aguentem" durante os meses de maior calor. Mais rega e menos cortes são algumas das medidas tomadas.

Claro que só mesmo jogadores, árbitros e dirigentes poderão ver de perto este verde; os adeptos terão de ficar em casa e evitar concentrações, à porta dos estádios ou em qualquer outro local. E, de uma forma ou de outra, há clubes que tentam ultrapassar esta ausência. Se na Bundesliga, o Borussia de Mönchengladbach encheu o seu estádio com adeptos de cartão, e o Benfica fez o mesmo por cá com cachecóis do clube, o Villarreal promete decorar as suas bancadas com fotografias dos seus aficionados. É uma jogada psicológica, claro – uma forma de mostrar aos jogadores que os seus ainda estão com eles. Às fotos, o Villarreal juntará ainda o som, com a transmissão no estádio de gravações de cânticos dos seus adeptos.

Não será naturalmente a mesma coisa, e ninguém saberá isso tão bem quanto o Valência. Esta temporada, o clube valenciano vinha gozando de números fortes no que à assistência diz respeito (83% da lotação preenchida, em média, mais que nas duas temporadas anteriores), e esse calor providenciado pelo seu público ajudou a equipa a alcançar um feito só ao alcance de Barça e Real: zero derrotas em casa. Isto enquanto o clube arde internamente, com polémicas várias entre direção e jogadores.

A Bundesliga já fez notar que já não existem jogos em casa e jogos fora; existe no futebol de agora uma neutralidade não-assumida por entre os clubes, e as fortalezas de hoje podem muito bem ser os destroços de amanhã. A percentagem de vitórias “caseiras” diminuiu drasticamente na liga alemã desde o seu regresso, e a Liga espanhola poderá seguir-lhe os passos. A “culpa” é do cérebro dos jogadores, "habituados a estarem rodeados de 40 ou 50 mil pessoas enquanto jogam", conforme explicou María Blanco, psicóloga desportiva: "Se isso não existe, [os jogos] vão-se assemelhar a um treino". Num artigo de opinião para o jornal El País, Jorge Valdano fala de "um outro futebol: distraído, irregular, menos heroico".

Tal como em Portugal, os estádios espanhóis foram alvo de vistorias sanitárias, com vista a permitir a realização de jogos no seu interior. Todos os clubes da Liga poderão jogar nos seus próprios terrenos. E o futuro também já se encontra a ser preparado. Enquanto não se puderem encher as bancadas, fala-se num regresso gradual dos adeptos às mesmas – mas logicamente separados, de forma a diminuir concentrações de pessoas. A adoção de um modelo cashless dentro dos estádios, a distribuição de gel desinfetante em vários pontos dos mesmos e a medição da temperatura de quem quer que queira entrar são algumas das ideias em discussão.

Para já, só mesmo a boa e velha televisão ou o bom e velho rádio diminuirão a distância que existe para os golos. Os mais velhos, que foram também os mais afetados pela pandemia, não foram esquecidos: a Liga e o grupo MediaPro, detentor dos direitos televisivos da competição, acordaram no final de maio oferecer a transmissão gratuita dos jogos que faltam realizar a lares de terceira idade. Só na nova temporada, cujo início está previsto para o mês de setembro, haverá público a ver futebol in loco: 30% do estádio ocupado, ao início, 50% em novembro e casa cheia em janeiro de 2021 – tudo isto dependendo da forma como a pandemia evolui.

Camp Nou
O Camp Nou, em Barcelona créditos: EPA/ALEJANDRO GARCIA

O futuro ao futebol pertence

A falta de adeptos nos estádios significou e significa, para muitos clubes, uma quebra considerável nos seus rendimentos. A pandemia veio alterar – talvez para sempre – a forma como o capital se ocupa do desporto-rei, e vice-versa. No final de maio, Javier Tebas afirmou que os clubes perderam cerca de 700 milhões de euros por causa da covid-19 – e só um retorno à normalidade poderá mitigar essas falhas. Muito antes, em abril, clubes como o Barcelona e o Atlético anunciaram um corte de 70% nos salários dos seus atletas, de forma a poder manter os empregos de todos os restantes trabalhadores nesses clubes.

Em Espanha, o futebol profissional representa 1,37% do PIB do país, sendo responsável por 185 mil empregos – e todos eles ficaram em risco. Até porque os excessos anteriores, destinados a promover a competitividade, colocaram as contas de vários clubes no vermelho, incluindo o colosso Barcelona. Sem adeptos e sem transmissões televisivas, o espetro da falência assolou o panorama futebolístico. E, curiosamente, quem mais sofre não são os clubes pequenos, mas sim os grandes. Por ano, o Camp Nou permite ao Barcelona gerar receitas na ordem dos 200 milhões de euros, e o museu do clube gera cerca de 50 milhões; o mesmo se passa em Madrid, com o Real, que com o seu Santiago Bernabéu lucra apenas menos 15 milhões de euros do que o Barcelona. Sem gente, não há turismo, nem mesmo o futebolístico.

Dado o rombo, as próximas janelas de mercado também deverão ser mais contidas; será de prever que as mega-transferências, como a de João Félix do Benfica para o Atlético, deixem de existir ou aconteçam com muito menor regularidade ao longo dos próximos tempos. Um estudo realizado pela KPMG, empresa que presta serviços de auditoria, fiscalidade e consultoria, estima que o valor de mercado dos jogadores das dez principais ligas europeias tenha caído em quase 10 mil milhões de euros. O que não invalida, claro, que os jornais desportivos aproveitem a pandemia para fazer sonhar os adeptos, com manchetes como “Neymar diz sim ao Barça”...

Fora de questão, pelo menos para Javier Tebas, estará um eventual relaxamento do fair-play financeiro imposto pela UEFA. Para o Presidente da Liga, "é importante que as obrigações dos clubes sejam cumpridas" e que as regras sejam seguidas por todos. Sem a ajuda dos investidores, os clubes espanhóis poderão encontrar um bálsamo na Federação Espanhola de Futebol, que avançou com uma linha de crédito de 500 milhões de euros para as equipas que disputam a La Liga e a Segunda Divisão.

Tais valores servirão também para os clubes poderem cumprir as suas obrigações para com os sócios, nomeadamente aqueles que compraram bilhetes de época e que agora se veem sem o produto que adquiriram, ainda que a palavra de ordem não seja “devolução”. O Sevilha, por exemplo, quer compensar os seus sócios ao longo das próximas temporadas, através de descontos no preço dos bilhetes de época. A Real Sociedad prometeu devolver 20% do valor dos bilhetes para os jogos desta época, tal como o Valladolid. E o Bétis sugeriu aos sócios “doar” o dinheiro gasto com os bilhetes não utilizados ao clube. Real Madrid, Athletic ou Maiorca apresentaram planos semelhantes, conscientes da situação delicada provocada pela pandemia.

Tudo somado, eis uma La Liga que recomeça do zero – e que, muito provavelmente, todos querem ver terminada o quanto antes, para que as próximas temporadas possam ser planeadas com maior afinco. Mas o fim da competição, em julho, não significa o fim da temporada futebolística em Espanha. Por saber está ainda o dia em que se jogará a final da Taça do Rei, que em 2020 terá cariz histórico: derby basco entre Real Sociedad e Athletic. Nem um nem outro querem jogá-la à porta fechada, conscientes de que este será um evento único e de extremo simbolismo para a causa basca – quanto mais não fosse para vislumbrar o Rei Filipe VI a ser obrigado a sorrir e a acenar, como os pinguins de “Madagáscar”, perante 80 mil pessoas a assobiar o “seu” hino... Mas enquanto essa final permanece suspensa, há que ficar com as palavras de Lionel Messi: “Houve muitas coisas negativas ao longo desta crise, mas não há nada pior que perder as pessoas que mais amas. Isso é o que há de mais injusto”. O capitão do Barcelona tem razão, claro. E também tem razão quando a tudo isto acrescenta: "O futebol, como a vida, não voltará a ser o mesmo". Que futuro(s) para La Liga?