“Liberdade”. “Paixão”. “Amizade”. “Respeito”. “Encontro”. As palavras soltas têm dono. Repetem-se, separadas no tempo e no espaço, à distância de 55 quilómetros, no Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL) e Vale de Judeus, pela boca de reclusos, responsáveis dos Serviços Prisionais e voluntários que ali vão treinar.
A razão de ser de cada uma destas palavras nasce à boleia de um desporto: râguebi. Da prática de râguebi nas prisões portuguesas. Os sons pedem emprestado alguns dos valores e princípios que estão na base da tal modalidade que obriga a contacto, muito contacto e que pode parecer ter tão de inapropriado como de inusitado que seja praticado, entre muros, por homens e mulheres que cumprem penas de prisão.
A responsável é uma associação, Rugby Com Partilha, que conta com a ajuda de antigos e atuais jogadores, treinadores de clubes e da Federação Portuguesa de Râguebi e simples voluntários que andam pelo EPL, Vale de Judeus, Alcoentre e Santa Cruz do Bispo (prisão feminina). Os serviços prisionais primeiro estranharam, depois entranharam. Hoje não prescindem do desporto.
O SAPO24 acompanhou estas “visitas da bola oval” às prisões seguindo os passos de quem prescinde do seu tempo e ali vai, acima de tudo, com uma vontade de entrega ao outro. Regressam garantindo receber 100 vezes mais do que dão.
Râguebi em chão de cimento e com arame farpado à vista
António Abreu, um dos fundadores do Rugby Com Partilha, ex-jogador do Grupo Desportivo Direito surge acompanhado de Henrique Garcia, responsável pela área desenvolvimento da Federação Portuguesa de Râguebi, Pedro Sarmento, treinador dos sub-14 do CDUL, que ficou “mundialmente” conhecido por ter apitado o jogo das meias-finais do campeonato nacional entre a Agronomia e o Direito, jogo que não viria a terminar devido ao comportamento dos jogadores. Mera curiosidade.
O EPL é o ponto de partida. Colado ao Parque Eduardo VII, em Lisboa, no topo deste pulmão verde no coração da cidade, o lado de fora da prisão tem (quase) vista de rio. A fachada, em forma de castelo, esconde a “casa” de quem cumpre uma pena. As visitas decorrem todas segundas-feiras de manhã.
Numa estreita porta lateral tocamos à campainha. “É para o râguebi” é a senha de entrada. Num guichet com grades, feita a identificação, o telemóvel não entra. Passamos o detetor de metais, torniquetes, portas de grades e o tempo que se segue decorre sem ligação ao exterior, sem registos, a não ser as memórias que trazemos.
Ao lado de um portão de ferro e com arame farpado enrolado no topo, à espera, está Francisco, o recluso responsável pelo transporte das bolas, o batente (saco para treinar o choque), coletes e pinos. O local de encontro, a cada treino, é ali, ao lado de um guarda prisional, cuja identidade é desvendada no peito. É ele que tem a chave. Abre o portão, correndo-o. Diz estar “velho” quando desafiado para entrar em campo.
Entramos com um outro guarda. A vista avista um ringue. De cimento. Há duas balizas de futebol e dois cestos de basquetebol. Damos meia dúzia de passos, saltamos até ao meio campo. Rodamos o olhar, 360º, e a retina é esmagada por dois pavilhões com pequenas janelas e gradeamento, arame farpado, redes por todo o lado e uma torre de vigia com vidro espelhado. O sentimento de claustrofobia toma-nos de assalto.
O silêncio é interrompido por vozes e passos que saem de um pavilhão de uma porta, desnivelada do ringue. Começamos por ver só cabeças. Depois o corpo inteiro. São 20, 30 reclusos. O número não é certo à vista desarmada, embora estejam todos “certinhos” inscritos numa lista. Alguns tatuados, equipados a rigor, com ténis e roupa desportiva, capuchos na cabeça e camisolas de equipas de futebol e basquetebol.
Liderados pelo professor Vasco Ribeiro, responsável de educação física do EPL, trocam cumprimentos com quem com eles priva nos próximos 45 minutos. “Então professor”, “boas” ou “como é, mano”, são saudações feitas acompanhadas com “um bacalhau sonoro em braço de ferro”, enquanto o outro punho, cerrado, bate no respetivo coração. Outros encostam ombros. Somos um deles, querem transmitir.
“O dia de râguebi é sair do universo prisional”
A bola começa a ser passada de mão e mão num jogo de aquecimento em que, excecionalmente, pode ser passada para a frente. Paulo, a quem faltam pouco mais de quatro anos para sair (7 anos de pena) conhece os terrenos que pisa. Jogou e integrou uma seleção nacional de sub-17 que subiu a Twickenham, catedral do râguebi mundial, em Inglaterra. “Tenho ajudado quem aparece pela primeira vez”, refere. “Não ligo ao passado. Partilho e demonstro o espírito de entre ajuda e companheirismo” diz.
Raúl cumpriu quase metade dos 8 anos. Com meio século de vida nunca tinha pegado naquela bola que, de início, escorregava das mãos. “Pensei que fosse mais violento”, assume. Aderiu na primeira hora e não se arrepende. “Ganhei mais amizades. Somos mais unidos, distinguimo-nos na prisão por sermos do râguebi”, frisa. “Havia rapazes de alas diferentes, com quem não falava, nem tinha confiança e hoje somos bons amigos, somos um grupo”, reforça. “É importante para sobreviver aqui. O dia de râguebi é sair do universo prisional e é muito positivo no nosso caminho”, desabafa.
“Nº 404”. Ouve-se no altifalante em tom estridente e nasalado. Atira a nossa mente “lá para fora” como se estivéssemos num centro comercial a ouvir chamar o proprietário de um carro pela matrícula. Pura ficção. Na realidade é um dos reclusos que chamam. Expliquemos: quem vive para lá dos portões tem um número e é tratado internamente por esse algarismo. Exceção feita naquela quase hora de treino, em que ganham nome próprio, sem apelido, é certo, pois não é o local para formalidades.
O “passa” e “à direita”, troca de palavras entre quem quer trocar as voltas ao adversário mistura-se, a espaços, com gritos, mais ou menos impercetíveis, talvez um dialeto próprio, vindo das paredes das celas. O diálogo é entre quem aguarda a vez de jogar e, assim parece, com os cobertores à janela, ténis ou garrafas que servem de decoração. Não se vê viva alma. Só se ouve as vozes dos outros reclusos que assistem a tudo na privacidade da “sua” casa.
Com 1,90m e sorriso fácil escondido por “rastas”, as rápidas passadas de António, de 24 anos, colocam-no, em segundos, na linha de ensaio improvisado. Joga na linha e por vezes embate no gradeamento. Não leva a mal. “Aprendo a não discutir e a divertir-me”, sublinha. De imediato acrescenta a palavra “respeito”. E “fair play”. Entre o vai e vem no ringue aponta semelhanças entre a vida e o jogo. “Dar dois passos atrás para dar um em frente. Quando sairmos temos que ter que força de vontade”, atira. Assim espera fazer, faltando-lhe “cinco anos” para cumprir os oito anunciados.
Há exercícios, jogo, ensaios, uns reclusos caem, outros ajudam a levantar e há gritos de alegria. Ouve-se “desculpa” acompanhado de uma mão estendida, plena de redenção e um “ya, na boa” de aceitação. Ninguém se magoou “à séria” no cimento. Há regras e alguém que faz de árbitro. Apita e todos obedecem sem pestanejar.
O professor Vasco dá o alerta que o treino vai terminar. Há horários a cumprir. Um guarda-prisional aguarda a entrada (saída) dos reclusos. Não é fácil dar a notícia. “Falam entre eles da ansiedade da segunda-feira. É um momento que envolve respeito e valores saudáveis de grupo. E eles sentem que pertencem a um grupo”, atira.
Manuela Raimundo, técnica no EPL, destaca uma curiosidade. “Não discutem, nem dizem asneiras, criam um espírito fora do normal”, continua.
Fim de treino. Numa correria, despem os coletes, arrumam as bolas e os pinos no saco e formam uma roda no meio campo. Abraçam-se no preciso local da nossa vista de 360º. A claustrofobia inicial é substituída pelo sentimento de união entre todos. António Abreu agradece o treino e pede uns segundos de silêncio. São respeitados.
“Eles” seguem o “seu” caminho ao lado do professor Vasco. Os voluntários seguem até ao primeiro portão no qual Francisco, o “homem das bolas”, tarefa que lhe foi confiada pelo professor Vasco, bate levemente com o pé no ferro para que alguém abra.
É novo no râguebi. Define o momento como um “bem-estar” com o outro. “Isto é um centro comercial de 24h, em que vamos conhecendo e partilhando. Sigo quem já saiu e já está a trabalhar e mantenho o contacto. Foi uma amizade construída aqui, que fica e na liberdade condicional, ligo-lhes. É uma coisa bonita”, resume.
Assume que após seis anos (pena de 10) “o mais difícil foi percorrido”. Integrado na ala G (tratamento de toxicodependentes) reforça que o que “ficou para trás já lá vai”. Prefere “olhar em frente” e seguir o seu caminho. Porta aberta, despedidas feitas. Francisco vai para um lado e nós regressamos à “Casa de Partida”. Recolhemos cartões de cidadão, telemóveis e seguimos a nossa vida.
Vale de Judeus: um campo no meio de uma prisão de alta segurança
No dia seguinte, terça-feira é dia de viagem quinzenal até Vale de Judeus. Manuel Cortes, antigo praticante e cofundador do Rugby Com Partilha, juntamente com António Abreu, Henrique Garcia e Francisco Mendes Correia, antigo praticante nas camadas jovens da Agronomia, seguem de Lisboa até ao Estabelecimento Prisional, percorrendo A1, a estrada nacional N366 até Alcoentre e um “cheirinho” de IC2.
Passamos um bairro habitacional destinado, inicialmente, aos guardas prisionais. Falta vida. A zona é desafogada, ampla, no meio do nada, o que contrasta com a urbanidade do EPL. Vamos com o histórico desta prisão de alta segurança na cabeça, confirmada com a leitura feita no site do Ministério da Justiça.
Há um primeiro gradeamento e um enorme parque de estacionamento, arame farpado por todo o lado, câmaras de videovigilância e muros tão altos como intransponíveis. Séries como “Prision Break” ou filmes como “Os condenados de Shawshank” ou “Papillon” ocorrem em “frames”.
Adriano Malfeito junta-se. Tem o ónus de ser o “culpado disto tudo” por certo dia, já lá vão 4 anos, ter desafiado Manuel Cores a levar o râguebi às prisões.
À entrada, uma inscrição em Latim: labor omnia vincit improbus, de Virgílio, que significa "o trabalho perseverante vence todos os obstáculos”, in Dicionário Priberam. A porta amarelada, que responde automaticamente, abre lentamente. Tal como no EPL há uma identificação obrigatória e uma passagem pelo detetor de metais. Tudo é visto à lupa, em especial as mochilas que transportam chuteiras e o equipamento.
Carlos Sousa, técnico de reabilitação, junta-se aos tais “cavalheiros que praticam um desporto de brutos”. Reconhece que esse dia “é uma rotina que os reclusos não abdicam”. Filipe Arraiano, da Direção de Serviços Prisionais, é outra das personagens na construção deste filme que teve início há três anos com a apresentação do râguebi a quem manda nas prisões. Um enredo enriquecido, em breve, com um episódio: um jogo entre reclusos, de EPL e de Vale de Judeus, com os últimos a jogarem em casa.
Passamos de um pavilhão para outro. Caminhamos e equipamo-nos numa sala que guarda bolas, chuteiras para os reclusos, batente e o saco de placagens. O som dos pitons nos corredores faz-nos sentir num estádio e chama a atenção dos guardas e de alguns reclusos recrutados para serviços de limpeza e manutenção.
A luz natural entra aos quadradinhos entre grades que rasgam geometricamente as janelas. Entre a troca de olhares e votos de “bom jogo” é feita nova identificação de quem vai passar para o lado de lá. A porta, de ferro, abre a 30º, presa por um cordão de ferro e um cadeado. Com as mãos ocupadas, entramos de fininho.
Levamos com um chapão de luminosidade. Faça sol, ou faça chuva, a amplitude de um quase hectare de campo pelado e uma pista de atletismo de cinza, delimitado pelas fronteiras de pavilhões, é o palco de treinos que nos espera. Respiramos liberdade.
Jogar num mundo que não é deles
Manuel e António chutam bolas para o ar. Um a um os reclusos vão chegando. Adriano, na pele de “evangelizador” e “olheiro” procura com o verbo reforços para o treino. “Nunca joguei, mas sou eu que com uma bola na mão os desafio a experimentar. A tocar na bola. A passar e a chutá-la”, frisa.
Henrique, bola na mão e apito na boca, chama todos. Ali há muito espaço para correr. E ali pode aplicar-se toda a adrenalina da prática da modalidade: placagens e ensaios, alguns deles em voo. Como se estivessem a jogar num mundo que não é deles.
“O râguebi é um desporto com contacto que é feito com a base no respeito pelo adversário”, realça Filipe Arraiano. “Aprendem com a modalidade a ter um autocontrolo maior, o que é fundamental na relação entre eles e com os guardas”, continua. “É importante na interiorização de alguns princípios e na capacidade de lidar com o oponente (adversário)”, sendo que, com as regras inerentes, “ajuda-os a modelar comportamentos cá dentro esperando que se transferiram lá para fora”.
Fernando, brasileiro, 26 anos e 15 anos de pena pela frente, mudou de equipa. No EPL treinava no ringue de cimento. Ganhou metros ao ar livre e um campo pelado em Vale de Judeus. “Mal entrei pedi para integrar o grupo. Por causa do que tinha vivido em Lisboa”, anuncia. “Não reflete o ambiente de prisão. Quando treino procuro sorrir, não penso em besteira. Lá dentro é mais reprimido, todo o mundo de cara trancada, a mulher não veio à visita, o guarda que pode acordar maldisposto, há aquela pressão na cabeça e pode passar uns para outros. No râguebi abstraio”.
Corpulento, só pensa “em jogar e não em aleijar”. A placagem é “coisa de jogo, sem ofensa”. Se for placado “levanto-me como um sorriso nos lábios. Puxa, poderia ter sido melhor. Se meter outro no chão, fui melhor que ele. Só isso. Sem discutir ou dizer “porra ou caralho”, atira. “Ninguém se lembra desses adjetivos”, reforça.
Uma população residente circula à volta do campo, em voltas sem termo. Correm. Andam. Falam. Se fixarmos o olhar ficamos com a cabeça a andar à roda. A um canto, um grupo faz elevações. No meio do pelado, Manuel, agarrado ao batente, desafia: “quem consegue empurrar o velhinho de 50 anos”. Uns metros antes, desalinhado, António segura o saco em forma de cilindro que serve para as placagens. No topo uma bola. Henrique explica como se faz. “Passada rápida até mais ou menos um metro antes, baixem o corpo, fixem, voem com braços abertos e agarrem. Depois apanham a bola e corram. Vamos lá, saem dois”.
Num campo desenhado com cones o desafio é aceite. Os reclusos alinham uns atrás dos outros. Preparam o que se seguirá, um jogo “à séria. Correm aos pares. Voam, a centímetros do António. “Pumbaaa” no Manuel, a quem levantam os pés do chão.
Uma liberdade de duas horas
Sem nunca ouvir falar do espírito da modalidade, Paco começou a percebê-lo ao primeiro dia. “Aprendi a respeitar os meus companheiros e o adversário”, garante.
Aos comentários dos colegas de cela, que surgem aqui e acolá, "ah, isso é violento”, responde: “não é. É como qualquer outro desporto”. Faltam “seis meses” para sair. “Gostava de continuar lá fora, ter uma equipa”, desabafa. A posição? “Jogo na ponta. Eu quero é correr”, solta.
Rogério calça as botas. “Olhava para os outros e há muito que gostava de experimentar”. Depois de ter a bola nas mãos pela primeira vez, no fim do primeiro treino entrou na cela e disse: “vou continuar”, recorda. Via o jogo na televisão, “mas não entendia nada”. Agora “já tenho uma ideia. Um jogo duro, mas leal”, garante.
Um recluso é chamado a um dos pavilhões. Vai começar um teste de português. Tem de ir. São as regras. Corre com a promessa que no final, terminado o exame, regressa.
Rui, 29 anos, está “preso há 22 anos, no geral”, informa a seco. Entrou em 1997, quando tinha “18 anos”, para cumprir uma pena de “19 anos”. Saiu em 2010, violou a condicional, regressou à vida prisional e com “metade da pena” cumprida espera sair “daqui a 2 anos e ter uma vida normal”. Uma vida que tem sido vivida na prisão.
Começou a correr para os lados. Hoje segue em frente até à linha de ensaio sem medo do choque. “É a melhor terapia possível” que recebe em Vale de Judeus que o tem “ajudado no comportamento básico e na maturidade como homem”, assume. Diz que é “essencial” para o equilíbrio. “Preciso disto. É a chave maior do recluso para se sentir como homem e cidadão”, assume. Agradece a oportunidade tida e elogia os voluntários. Os reclusos sentem-se “gratos e felizes por saber que chega nessas condições esse nível de humanismo”, descreve.
Albano, 31 anos, regressa à infância, aos tempos da equipa de basquetebol. Aprendeu a “despertar uma nova paixão” num desporto que “não tinha praticado”. Acima de tudo está a “aprender a ter uma maior ligação com os outros reclusos”. Noutros jogos é guarda-redes. “A culpa, por norma, recai em mim. Aqui não; estamos todos a remar para o mesmo. Não gritamos com quem deixa cair a bola”.
Sobre o treino “que deveria ser diário”, revela que lhe “liberta a raiva e o stress que temos dentro de nós, de uma maneira saudável, sem prejudicar ninguém”, inclusive a eles próprios. “Comentamos as jogadas e antes de cair na real que estou preso, é diferente ... sinto uma liberdade de duas horas”, descreve este recluso que conclui
o 12º ano entre grades (entrou com o 6º ano) e esforça-se para sair “daqui a 4 anos” quando completar dois terços da pena que lhe foi atribuída.
Cair e levantar e a inspiração das prisões argentinas
Depois do treino, hora do jogo. são 6x6, quase um sevens. Nota-se alegria. Dureza e respeito. Escuta-se o som das placagens, das quedas no chão de terra batida, das risadas, dos “ais”, dos gritos de “aqui”, de alguém a pedir a bola. Bola escapa das mãos para a frente. Henrique apita a falta que tem um nome: avant. É colocada no preciso local onde foi cometida e segue jogo com os jogadores das duas equipas, alinhados, a olharem de frente uns para os outros. “Olha a linha, eu fico com este”, ouve-se.
“Jogar com disciplina e regras”. Ramon descreve que “é isto que o râguebi nos está a ensinar. Como na vida”. Queixa-se do ombro. Não daquela tarde. Foi de uma queda há muitas tardes atrás que não o impede de voltar. “Não importa quantas vezes caímos no chão; importa é levantar de seguida”, admite. A frase busca inspiração no livro que guarda na cela: “No permanecer caído: la historia de Los Espartanos”, narrativa de uma equipa de râguebi criada por Eduardo “Coco” Oderigo na Unidad Penitenciaria Nº 48 de San Martín, Província de Buenos Aires, na Argentina.
No final de mais um treino olha à volta e solta. “Há novos, pretos, brancos, ciganos, espanhóis, italianos e brasileiros. Somos uma família. Criámos um laço de companheirismos acima das nossas expectativas”. Naqueles instantes não se lembra onde está. “Só sei que estou a jogar râguebi”, chuta. Guarda as palavras dos “treinadores” e as memórias do treino. “As duas horas valem uma semana”, confessa.
Henrique que também transmite “os princípios pedagógicos do râguebi” apita para o final. O jogo teve a intensidade que se esperava. Trocas de abraços, corredor feito entre vencidos e vencedores. As chuteiras, as bolas e os pinos voltam à procedência.
Tal como no EPL, António Abreu chama todos para uma roda para as últimas palavras. Pede 10 segundos de silêncio. Tempo é algo que não falta a quem tem 4, 10, 15 anos pela frente. Têm todo o tempo do mundo.
Bebem, em silêncio, as palavras. António faz pontes entre o jogo e a vida. A referência ao slogan da associação: Centuplus – “Damos um, recebemos 100”, é uma constante. Acrescenta o porquê do símbolo: uma mão que agarra uma bola e em que se pode ver também uma pomba. Manuel e Henrique elogiam o que viram em campo.
Da roda de braços apertados, corpos colados com suor, às mãos unidas em torno do grito que mistura um “yip, yip hurra” com “Râguebi Com Partilha”, são segundos eternos. Segundos que se repetirão.
“Enquanto aqui for diretor, o râguebi não terminará”, garante o diretor da cadeia de Vale de Judeus, José Ribeiro Ferreira.
Chega ao fim mais uma visita. Em todos os momentos, no EPL, Vale de Judeus, nas várias conversas tidas, sobre o jogo, os filhos, namoradas ou mulheres, o trabalho que os espera, em momento algum foi colocada a questão que quem está cá fora espera que se pergunte: “Porque é que estás aqui dentro?”. Nem tão pouco nos interrogámos.
Filme rebobinado até ao parque de estacionamento, com paragem na troca de roupa e levantamento da identificação. A 3ª parte, por impossibilidade lógica, só é celebrada pelos voluntários nas conversas no carro a caminho de Lisboa. Como nos jogos a sério.
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