Saúde mental. A palavra e o seu sentido, embora já existissem, foi amplamente difundida no léxico desportivo após as confidências da ginasta norte-americana, Simone Biles nos Jogos Olímpicos Tóquio2020.

Os demónios interiorizados na cabeça de Biles saíram-lhe pela boca em forma de reflexão e “alertou o mundo para uma coisa que ninguém gostava de falar”, recordou Luís Alves Monteiro, presidente da Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal ao SAPO24.

“Havia estigma, mesmo a própria expressão saúde mental estava escondida, até os próprios atletas começaram a entender alguns sintomas que tratavam de uma forma normal e começaram a perceber que afinal também tinham isso”, exprimiu.

As confissões da multimedalhada olímpica norte-americana, “alertaram a sociedade”, reconheceu Luís Alves Monteiro. “É um tema da sociedade, porque é transversal, não é um tema do desporto”, reforçou.

Estudo do Observatório de Saúde Mental e da AAOP

Tendo por base o estrondo provocado por Simone Biles, a AAOP manteve-se fiel ao “compromisso de não deixar cair o tema”, posição assumida após o primeiro seminário de saúde mental, em novembro de 2022. Dois anos passados, apresentou durante o II Seminário Nacional de Saúde Mental no Desporto de Alta Competição os resultados de um inquérito online a atletas e ex-atletas.

“Tivemos 173 respostas, um número muito bom porque é um tema sempre tabu, dos quais 147 completas”, contabilizou em conversa com o SAPO24 ao analisar as conclusões do estudo do Observatório de Saúde Mental da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde mental, em cooperação com a Associação de Atletas Olímpicos de Portugal (AAOP).

“Apanhou alguns atletas no ciclo de alto rendimento, portanto no ativo, e atletas em pós-carreira e que também servem de base para provar que, de facto, a saúde mental é um tema transversal, não é só na altura ativa”, constatou a propósito dos números e percentagens apresentadas no passado mês de maio.

20% dos inquiridos manifestaram “estigma em falar sobre a saúde mental”, idêntica percentagem afirma ter tido “doença mental diagnosticada, ou ainda a tem”, 30% continua com “problemas de saúde mental ativos” e cerca do mesmo percentual dos que “sofrem/sofreram de doença mental nunca realizaram qualquer tipo de tratamento”, lê-se nas conclusões.

Os dados do inquérito merecem um parêntesis por parte de Alves Monteiro face ao universo inquirido. “A Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental diz que não se pode extrair daqui conclusões absolutas”, alertou.

Afastar o estigma e normalizar

Apesar do alerta feito, Alves Monteiro é, no entanto, é taxativo. “Há uma frase que diz que é um campeonato que é preciso ganhar”, disparou. “Depois é afastar o estigma e normalizar a situação. Porque se conseguimos normalizar a saúde mental, para que seja uma oportunidade e não uma ameaça, hoje já é utilizada como sendo uma capacidade da pessoa produzir melhor performance”, sublinhou.

“O tema saúde mental são acontecimentos, comportamentos, episódios e não patologias. Só em casos extremos é que podem traduzir-se em patologias. Portanto, se são episódios, se são acontecimentos na vida de um atleta, também podem ser aproveitados no ponto de vista da performance, se os normalizarmos”, reforçou.

Salva a devida comparação, o que sucedeu com Simone Biles teve réplicas em Portugal. “É público, a Diana Durães, da natação, no último ciclo olímpico, a Vanessa Fernandes que foi uma situação perfeitamente compatível com o tema, porque foi isso que se passou, deixou de competir porque não aguentou a pressão, a pressão do pai, a pressão de toda aquela situação mediática”, exemplificou.

“A própria Bárbara Timo (judo) fala de problemas de saúde mental. Há, casos mais patológicos, por exemplo, o Celso Dias, no judo, andou muito na berra, foi um caso extremo que em vez de ser um exemplo para promover este tipo de coisas, foi exposto”, lastimou.

“Mas isto é uma coisa que acontece e aconteceu, fui atleta olímpico e tenho noção que havia alturas quase de depressão. É um tema que pode acontecer recorrentemente com muitos atletas”, assegurou. “Agora, está escondido, as pessoas não têm grande interesse em falar, porque, obviamente, é sempre um tema polémico”, analisou.

“Michael Phelps, esteve na estratosfera, 28 medalhas e chegou à depressão e quase ao suicídio”

Neste estado, a Associação de Atletas Olímpicos vê uma janela de oportunidade para atuar. “A Associação tem aqui uma quebra do paradigma, que é trazer pessoas fora do desporto para dentro do desporto. Porque o desporto, por si só, não consegue resolver estas situações”, alertou.

“O nosso objetivo é trazer a sociedade civil para o desporto”, assinalou. “Temos, por exemplo, ações com a Liga dos Combatentes, vamos fazer um protocolo para aproveitar a rede de psicólogos que acompanha os ex-combatentes e pode ser perfeitamente aproveitado pelos atletas”, referiu. “O presidente da Liga dos Combatentes, general Chito Rodrigues, é um olímpico, das Esgrima”, relembrou, logo alguém com sensibilidade para o tema.

“No fundo, estamos a alargar também a base para podermos intervir melhor junto aos atletas que estão debaixo de uma grande pressão, têm que conseguir os resultados para os Jogos Olímpicos, e quando chegam, não conseguem os objetivos”, referiu.

À pressão, podem seguir-se sintomas depressivos. “A depressão, possíveis casos de depressão, é maior em ex-atletas. Param, têm aquele vazio, aquele esvaziar da competição olímpica”, comentou.

Uma das grandes preocupações da AAOP está concentrada nos atletas que penduram a vida desportiva. “O pós-carreira é tão traumático, ou mais, do que durante a carreira. É muito problemático mesmo e não é só em Portugal, é transversal”, assegurou.

Luís Alves Monteiro socorre-se de casos. “Os atletas terminam cada vez mais tarde com os avanços da ciência, da tecnologia, etc. Emanuel Silva (canoagem) terminou com 38 anos. O Ronaldo, que por acaso é olímpico, ainda está na performance aos 39”, exemplificou.

“Agora, o Ronaldo não tem esse problema, porque obviamente tem a vida dele resolvida. Mas veja um atleta que não tem a vida resolvida, um atleta amador, ou pseudo amador, que acaba com constrangimentos financeiros enormes, e pior que isso, chegam atrasados ao mercado de trabalho. E esse mercado de trabalho não perdoa a desadequação e a falta de habilidade”, realçou.

O responsável dos atletas olímpicos cita exemplos de dramas vividos na primeira pessoa. “Atletas a venderem medalhas para sobreviver, problema de alcoolismo e pode chegar ao suicídio. O Michael Phelps é um bom exemplo disso. Esteve na estratosfera, 28 medalhas e chegou à depressão e quase ao suicídio”, comentou.

“Não queremos incomodar como atletas, mas acabamos incomodados”

Para ajudar à integração dos atletas, a Associação de Atletas Olímpicos de Portugal está a trabalhar com diversas empresas. “Fizemos formações com a Nestlé, a Intel, multinacionais” no sentido de ajudar “estes atletas, que estão num limbo, numa situação muito complicada, mesmo com literacia, porque um indivíduo, mesmo tendo um canudo na mão, se chega com 35 ou 36 anos ao mercado de trabalho não está atualizado. E hoje, as tecnologias não perdoam. Se uma pessoa não se mantém atualizada, está completamente fora”, asseverou.

Em jeito de finalização de conversa sobre saúde mental, Luís Alves Monteiro, presidente da AAOP diz que a associação consegue “falar destes temas mais polémicos, porque não estamos dependentes de ninguém, nem de agendas, nem de nada”, adiantou.

“Não queremos incomodar como atletas, mas acabamos incomodados. Porque isto também é o estigma do atleta. É olharem para os atletas e dizerem: este tipo só sabe correr e está aqui a falar, ele tem que dar pontapés na bola. Já todos ouvimos isso”, lamentou.

“Ainda há pouco tempo, um alto dirigente do olimpismo disse que a Fernanda Ribeiro só sabia era correr. É com isto que nós temos que lidar”, rematou Luís Alves Monteiro presidente da Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal.