Um campeonato conquistado a ferros, outro perdido após uma liderança de sete pontos, uma final de taça ainda por disputar, e prestações minimamente dignas nas competições europeias apesar de resultados mais “pesados”. Sérgio Conceição chegou ao Porto para abalar o sistema mas parece estar prestes a ser engolido por ele. Ainda assim, e tudo somado, é dele que os Adeptos precisam.

Se não ganhar, eu assumo: vou-me embora – Sérgio Conceição, 26 de abril de 2019

Adoramos os que odeiam perder – Super Dragões, 4 de maio de 2019

O Sérgio Conceição será treinador pelo menos mais dois anos, que são os que tem de contrato – Jorge Nuno Pinto da Costa, 15 de maio de 2019

Num ápice, a luz que guiava os destinos do Futebol Clube do Porto esfumou-se. A final da Taça da Liga, competição perdida para o Sporting nos penáltis, a arma que o mundo do futebol encontrou para combater todos aqueles que sofrem de insuficiência cardíaca, foi o primeiro passo rumo à desilusão e desolação. Seguiram-se os empates em Guimarães e Moreira de Cónegos, prova de que o Minho, apesar do arroz de sarrabulho, da praia de Moledo e de todo o verde e azul que se vislumbra do alto da Serra d'Arga, pode por vezes ser cruel para com quem o guarda em panteísmos. A derrota em casa frente aos praticamente eternos rivais, cujo nome é assaz pronunciado por quem tem nas veias a velha máxima do capitão João Pinto – só uma cor: o azul e o branco –, ou então pronunciado com o maior dos desdéns, foi a machadada final num percurso que se iniciou com dois percalços e 18 vitórias consecutivas, entre Campeonato, taças e Liga dos Campeões.

Foi aí, no Estádio do Dragão, em casa, entre gritos de uma guerra declarada por todos exceto as altas instâncias, entre crianças e avôs de palavrão na boca (já se sabe que, no Norte, e em maiúscula porque é Nação, um palavrão não é um palavrão mas um sinal ortográfico – e isto é belo, escandalosamente belo, sem ironia), entre hashtags e panos e bandeiras desfraldadas, que o Futebol Clube do Porto perdeu o jogo que não poderia nunca ter perdido. Pior: não só o perdeu como o perdeu bem. Pela primeira vez em muitos anos, Voldemort foi ao Dragão e não receou o relâmpago que o Porto costuma carregar não na fronte mas no peito, o mesmo peito que sofreu, sem dó, duas facadas certeiras e acabou com os ânimos de quem já se sentia campeão – como não? – em dezembro.

Pela primeira vez em muitos anos algo semelhante à vergonha se abateu sobre as honradas mentes Portistas, principalmente sobre aquelas cuja maior vergonha era, até então, a ignomínia de ter nascido em Lisboa. E por toda a bancada central, pelo menos por aquela que era possível ir escutando enquanto o suor e os nervos não toldavam os sentidos naquela fatídica noite, o culpado tinha dois nomes apenas: Sérgio Conceição. 

Adrian a titular?!

Onde é que está o Danilo?!

O Alex Telles está todo rebentado, é o que dá não rodar a equipa...

Ó Sérgio, vai-te f...

Reações a quente, claro, que em jogos deste género a atmosfera ferve sempre. Injustas, quiçá, porque afinal de contas também se fala daquele que é um dos nossos, aquele que recuperou uma mística que há muito se julgava perdida, após quatro anos sem tocar numa prata que fosse, aquele que ajudou a fazer do Futebol Clube do Porto duas vezes pentacampeão: uma nos anos 90, e outra quando assegurou que o Porto seria o único clube, até hoje e pelo menos durante mais alguns anos, a merecer esse rótulo em Portugal. É futebol e contestação existe sempre, mais ou menos bem educada; mas, lá bem no fundo, todos os Adeptos Portistas (e em maiúsculas porque são Povo) sabem que não podem, no meio das lágrimas de tristeza, acirrar os dentes contra aqueles que já os fizeram chorar de alegria (um privilégio que se estende a Costinha, por causa daquela cabeçada em Manchester, em 2004, e a Kelvin, por causa de... Todos sabem o porquê).

O desânimo dos Adeptos parece ter-se estendido a uma equipa que arriscava, após anos de deserto, voltar ao lugar que é seu por dever e direito. Não como uma fénix, pois uma fénix é uma ave que ressuscita (e as aves são tabu em seio Portista), e o Futebol Clube do Porto é o dragão milenar e eterno, a Ouroboros que não se devora; renova-se. A fé foi abalada pelos percalços, e ninguém que gosta de futebol alguma vez se chamou Jó. Este será um ano azul, no sentido em que o será de blues – a música que retrata a amargura.

Mas Sérgio continua incólume, apesar dos rumores que grassam por fóruns e redes sociais de que está prestes a fazer as malas e abalar para outras paragens, apesar das críticas ao seu estilo de jogo (uma expressão tornada corriqueira é a do correbol, que basicamente significa bola para a frente e sobe Marega!). E, neste último aspeto, não é de todo possível colocá-las de parte: uma equipa da cidade que dá o nome a um dos vinhos mais apreciados por todo o mundo não pode estar sempre a embebedar-se com vinho tinto da tasca, sem desprimor para todas as tascas onde já se foi feliz em bebedeira.

Continua incólume porque os Portistas se vêem e reconhecem na sua figura, na sua personalidade, no não deixar nada por dizer. Partindo também daí algumas das maiores críticas que lhe têm sido feitas, pois do nada essa mesma personalidade forte se esbateu, dando lugar a uma desapreciada teimosia, embirrância, mesquinhice (ver caso Militão) ou, pior ainda, ao silêncio. A gratidão existe mas, tal qual a luz, também se pode esfumar.

Os Portistas precisam que Sérgio fale, pois já se aperceberam de que se não for ele a fazê-lo, ninguém o fará – não os jogadores, não a mal-amada SAD, não Jorge Nuno Pinto da Costa, que já não tem a juventude e a dinâmica de outrora. Precisam que Sérgio ali esteja não (só) enquanto treinador, mas enquanto símbolo de uma instituição de combate ao centralismo e ao poder podre, de reverência pelos que se superam e se tornam mágicos, de contestação plena ao espetáculo Debordiano em que se transformou o futebol. Precisam que Sérgio ali esteja para dizer a quem o queira ouvir e não só: ganhamos porque somos melhores.

Por outras palavras, precisam que Sérgio #SejaPorto, na plena aceção dessa condição: que não se mostre publicamente satisfeito em atingir finais e quartos-de-final e pontos suficientes para ficar em segundo lugar, porque esta, ao contrário daquilo que ele possa dizer – se o discurso no balneário é outro ou não, são outras histórias – não foi uma época à Porto. Não existe dignidade nas vitórias morais, mas nas que se concretizam, seja no Campeonato, na Liga dos Campeões, na Taça da Liga ou no torneio de futebol inter-turmas do Carolina Michaëlis.

E precisam de Sérgio, porque têm nele a confiança necessária, porque odeia a derrota. Precisam do grito e da roda no centro do relvado e da força de vontade de um Salgueiro Maia: vamos acabar com o estado a que chegámos!. Precisam de Sérgio e sobretudo da sua raça, que é a de qualquer Portista. E “raça” não significa “arrogância”; não há nada de fundamentalmente errado em beijar a humildade e passar não só a ensinar, mas também a aprender – e esta foi uma época de aprendizagem em muita, muita coisa. A próxima também terá que o ser sob pena de se perder não só Sérgio como o estatuto de Porto, a palavra exata, que nunca ilude.

Sérgio Conceição não está acima do Porto – ninguém está, nem mesmo o seu Presidente – mas veio a tornar-se num dos seus heróis, porque acreditou quando se calhar a crença já teria ido para o badagaio e levou direta ou indiretamente Herrera a mandar um petardo ao ângulo esquerdo da baliza de Bruno Varela. Sérgio Conceição é necessário porque se recusa a ser palhaço e porque, apesar de tudo, esta sua relação com os Adeptos Portistas é ainda de amor-menos amor e não de amor-ódio, como foram os casos de Lopetegui e Nuno Espírito Santo (José Peseiro é uma espécie de Alésia em todos os clubes por onde passou: ninguém sabe onde fica Alésia, já dizia Abraracourcix). E os heróis, como escreve Lester Bangs numa famosa entrevista com Lou Reed, não são infalíveis. Até o melhor surfista cai da prancha de vez em quando. E ninguém tem sido tão eficaz a surfar o mar azul quanto Conceição.