O atual campeão da categoria de peso-leve do UFC (a maior organização mundial de Artes Marciais Mistas) Khabib Nurmagomedov levou de vencido o irlandês Conor McGregor, retendo desta forma o cinturão, num combate que decorreu este sábado no UFC 229, na T-Mobile Arena, em Las Vegas, nos Estados Unidos.

Tratando-se de um combate pelo título e sendo o principal evento da noite, dizem as regras do UFC que podemos esperar cinco assaltos com a duração de cinco minutos cada, podendo a luta durar até 25 minutos. Esta noite, porém, no quarto assalto, o russo Khabib Nurmagomedov, de 30 anos, conseguiu aplicar um apertadíssimo mata-leão a Conor McGregor, o irlandês não resistiu, e tal como aconteceu numa luta anterior com Nate Diaz, McGregor bateu no seu ombro esquerdo, um sinal de submissão e que no MMA equivale ao içar de uma bandeira branca, um sinal de desistência. Herb Deen, o árbitro do encontro, pareceu ter mesmo que "desamarrar" os braços do russo do pescoço de Conor, pois este não dava qualquer intenção de o largar.

É inegável que se tinha acabado de observar um momento brilhante na sua carreira. Invicto, tinha o respeito dos seus pares e de praticamente todos os seguidores da modalidade; muitos acreditavam que se havia alguém com a capacidade para terminar com aquele 0, era McGregor. E não foi. Em quatro assaltos, apenas no terceiro parece não ter saído por cima. Nos restantes, contudo, o seu domínio parece ter sido claro. Só que deitou tudo a perder num ato de pura loucura, assim que terminou o combate, quando saltou a jaula do octógono para chegar a um elemento da equipa de McGregor que, segundo a imprensa norte-americana, estaria num bate boca incessante desde o início do combate com o atleta russo.

O seu registo é agora de um perfeito 27-0. Zero derrotas à custa de um estilo sufocante, dominador e pouco cortês para com os seus adversários. E não é novidade para os que acompanham o mundo do MMA aquilo que está em cima da mesa quando Khabib mete os pés num octógono: ele vai derrubá-los, levá-los para o tapete e assegurar que ou desistem ou são maltratados à mercê dos seus punhos. O seu domínio é de tal maneira esclarecedor que muitos duvidam que exista alguém que consiga fazer frente a uma força desta natureza. (Nesta questão Tony Fergunson, outro lutador da categoria, poderá discordar.) Esta noite foi só mais uma prova disso. E, caso as coisas tivessem decorrido dentro da normalidade de um espetáculo destes, os parágrafos seguintes seriam de bajulação a um dos melhores lutadores de sempre modalidade. Já existiram outros que tiveram um longo e duro reinado, mas ninguém conseguiu um registo imaculado à vigésima-sétima luta.

Mas há muito por explicar e para contar. Porque aquilo que deveria de ter acabado com a celebração de um campeão invicto, terminou num autêntico caos. Lutadores detidos (e depois soltos), altercações entre espetadores, pagamentos que não vão ser consumados... Enfim, por esta altura ainda se está a tentar perceber qual será o futuro do vencedor da noite e estão em cima da mesa vários cenários. Porém, antes disso, vamos tentar perceber como é que chegamos todo este imbróglio.

"Existe uma maneira simples de decidir quem realmente merece sentar-se no trono... fechem a porta atrás deles e deixem-nos lutar"

Estas foram as palavras que, na voz do ator norte-americano John Malkovich, causaram enormes calafrios a todos aqueles que puseram os olhos num vídeo de promoção do combate que opôs esta noite o irlandês Conor McGregor e o russo Khabib Nurmagomedov, naquilo que nos últimos dois meses, pelo menos nos meios da especialidade, tem sido descrito como o maior combate da história da modalidade. E tudo começou em abril, quando Conor McGregor quis tirar ilações daquilo que tinha acontecido com o lutador Artem Lobov, seu colega de equipa, parceiro de treino e amigo pessoal.

Uma das obrigações contratuais de um lutador do UFC consiste em ter encontros e interações com os fãs, ir a inúmeros encontros com jornalistas e meios de comunicação e outros eventos promocionais nos dias que antecedem os eventos. E num desses momentos relativos ao UFC 223, Lobov disse a um fã no seu Instagram que Khabib não era aquilo que as pessoas queriam fazer dele e que Conor McGregor é que era o verdadeiro talento na divisão. Khabib Nurmagomedov terá posteriormente visto o vídeo, não gostou do que ouviu e confrontou Lobov — que nasceu na Rússia, mas que vive na Irlanda — no hotel onde estavam instalados.

McGregor terá então apanhado um avião até aos Estados Unidos onde estava a decorrer o 'Media Day do UFC 223 e lançou um troley de metal contra um autocarro onde seguia Khabib Nurmagomedov na garagem do Barclays Center, em Brooklyn, Nova Iorque. Como consequência, três lutas foram retiradas do cartaz — incluíndo a de Lobov — e dois atletas ficaram feridos. Em julho, Conor McGregor declarava-se culpado pelos danos causados, permitindo assim uma condenação mais leve, apenas por vandalismo — quando arriscava uma pena de sete anos de prisão por agressão. Não acabou preso, mas teve que pagar uma indemnização, prestar serviço comunitário por cinco dias e frequentar aulas de autocontrole e gestão da raiva — mas estava livre para competir no UFC. Foi uma "conversa" que despoletou toda uma cadeia de acontecimentos que alimentaram tensões e que culminaram no combate desta madrugada. Por isso, não foi surpresa quando a organização agendou um combate entre ambos dentro do octógono.

E, depois de confirmado, seguiram-se conferências de imprensa onde o irlandês, que é conhecido por ter uma atitude excêntrica e uma boca de todo o tamanho, tocou em pontos que Khabib considera serem fundamentais da sua integridade. Há assuntos que, na sua opinião, não podem ser trazidos à baila, independentemente de tal ser feito para "promover" a luta. Se trás mais audiência, dinheiro ou fama, não interessa. É necessário respeito, na sua opinião. Nurmangomedov é proveniente da República russa do Daguestão, onde cerca de 83% da população segue o Islão. É um islâmico devoto e recusa combater na altura do ramadão. É treinado pelo pai, um veterano de guerra, desde tenra idade. Em criança, lutou com ursos. Em adulto, esmiuça desenfreadamente aqueles com que se cruza no octógono. Conor ofendeu o pai, a sua cidade natal e tudo aquilo que pudesse dizer para entrar na sua cabeça e ganhar na guerra mental que existe antes do combate em si.

Khabib iria responder no octógono.

Depois do bate-boca, o combate

Foi uma noite em que Nurmagomedov ditou o ritmo desde o primeiro momento. Executou o seu plano, fez aquilo que todos sabem que vai fazer — mas que ninguém conseguiu ainda parar — e ainda surpreendeu o irlandês em pé. Antes do seu nome e do de McGregor serem anunciados para o último combate da noite, a multidão estava de pé a reagir de maneira efusiva aos vídeos de promoção. O ambiente estava eletrizante. A luta anterior tinha sido de grande qualidade e a anterior a essa também. Houve, inclusivamente, um lutador a tirar os calções e a dar uma entrevista final de boxers porque tinha "as bolas quentes".

Eram 5h28 da madrugada em Portugal Continental quando começou a tocar Foggy Dew de Sinead O’Connor. Quem já viu o irlandês lutar, sabe que é o primeiro sinal que o espetáculo está a prestes a começar. O octógono estava coberto de fumo verde, os ecrãs preenchidos com a bandeira da Irlanda e a arena escureceu, iluminada apenas com as luzes dos telemóveis, que ali faziam o papel das estrelas. Enquanto caminhava para a jaula, McGregor gritou um «Lar doce Lar» e o público reagiu pelos dois anos em que estivera fora da competição.

Primeiro entrou aquele que desafiava o lutador que tem o cinturão. Conor, na verdade, nunca tinha perdido o dele; mas fez um hiato demasiado grande e um combate de boxe pelo meio, o que levou a organização a tomar a opção de o retirar das suas mãos.

UFC 229: Khabib v McGregor
créditos: 2018 Getty Images

Depois, entra o campeão em título. Sereno, frio e determinado. Nada no seu olhar parecia desviá-lo do seu objetivo: "Castigar o Conor; quero desfazer a sua cara", disse Khabib inúmeras vezes nas entrevistas. Quando chega o momento de tocarem as "luvas" antes do combate, não o fizeram; algo que não deixou propriamente ninguém surpreendido. Por norma, é um sinal de respeito. Mas aqui ninguém quer amizades.

No primeiro assalto, Conor não sofreu muito dano, embora tivesse acontecido no octógono aqui a que se pode chamar uma "masterclass" de jogo no chão. Não que tenha havido muita ação em si, só que deu para testemunhar, mais uma vez, a arte de Khabib neste capítulo do MMA.

No segundo, no entanto, o cenário alterou-se, a luta saiu do chão e, para surpresa de quase todos, Nurmagomedov acertou em McGregor com uma poderosa direita, isto é, deixou o adversário bem abanado de uma maneira que muitos poucos pensaram ser possível antes do início de todo o espetáculo. Porque a luta desta noite era também uma de estilos: grapplers vs strikers. Pouco depois, McGregor foi ao tapete e sofreu bastante dano, mas resistiu à tempestade; no entanto, convém dizer que com alguns movimentos ilegais pelo meio.

De acordo com os especialistas, McGregor perdia agora as suas chances de dominar. A sua especialidade é fazer cair o adversário, mas peca quando a matéria é o pulmão. E quando o "Gorila Irlandês", como McGregor se autodenomina, fica sem gás, todo o seu jogo sofre um revés. Por outro lado, gás é coisa que o russo tem para dar e vender. Ainda assim, no terceiro assalto, parecia que Nurmagomedov estava começar a tirar o pé do desacelarador, e McGregor, embora cansado, assumiu o controlo do octógono, fez uso da sua mão esquerda e contra-atacava; atirava à cabeça, ao corpo e utilizava os pontapés para manter o russo à distância. Foi muito provavelmente um assalto a favor de McGregor.

Até que no quarto round Nurmagomedov voltou "ao trabalho", levou o irlandês ao chão e averbou-lhe a quarta derrota na carreira.

É então que aquilo que se fala e a vitória Khabib fica para segundo plano. Nurmagomedov lançou-se sobre o topo da jaula, passou para o lado da audiência e envolveu-se numa troca de "galhardetes" com um elemento da equipa de Conor McGregor; resta dizer que outro que não Lobov, o tal que iniciou toda esta rivalidade.

Não demorou muito para que todo aquele tumulto se espalhasse pelos limites do octógono. Instalada a confusão, um membro da equipa de Nurmagomedov entra para dentro da jaula, procurou McGregor e atacou o irlandês pelas costas (momentos antes, o próprio McGregor já se tinha empoleirado na jaula e trocado alguns "galhardetes" com outro elemento da equipa do russo).

A normalidade ficou sanada minutos depois, mas o motim já tinha sido iniciado. Os organizadores tentaram restaurar a ordem, com o presidente do UFC, Dana White, a pedir calma e a falar dentro do octógono com Khabib, informando que não era aconselhável existir a habitual "cerimónia" de entrega do cinturão ao vencedor da luta porque o público podia começara arremessar objetos. Khabid não queria saber; queria apenas o seu cinturão. Podia ir "preso", mas queria que lhe colocassem o cinturão. Não aconteceu.

Quando Bruce Buffer, a voz do octógono e mestre de cerimónias da organização, anunciou o resultado oficial — vitória por finalização de Nurgmagomedov aos 3:03 do quarto assalto — nenhum dos protagonistas estava presente. Nem o derrotado, nem o vencedor. Apenas dúvida e confusão.

O futuro de Khabib é incerto. Será que vai perder o título? Será que vai voltar a combater? Ainda não se sabe, mas Dana White confirmou que sua parte da bolsa, cerca de 2 milhões de dólares, estão atualmente retidos. Todavia, aquilo que é certo é que há uma investigação em curso por parte da Comissão Atlética do estado do Nevada, conforme explicou o seu diretor, Bob Bennett, ao MMA Fighting.

Dana White, por seu turno, confirmou em conferência de imprensa que três elementos da equipa de Nurmagomedov haviam sido detidos, mas que acabaram por ser soltos porque "o Conor não quis apresentar queixa".

UFC 229: Khabib v McGregor
créditos: 2018 Getty Images

"Não consigo assegurar a 100% que continue campeão"

Porém, não garante que não haja novo volte-face na divisão e lhe seja retirado o cinturão. "Não consigo assegurar, a 100%, que vá continuar como o campeão. E não é comigo que ele se tem que preocupar. Há uma investigação em curso a ser feita pela Comissão Atlética do Nevada. Sanções, suspensões, multas... existem muitas hipóteses", rematou.

Depois, foi a hora de Khabib aparecer e fazer uma declaração mais curta do que é habitual. Pediu desculpa à Comissão do Nevada, mas questiona aquilo que McGregor fez antes das suas ações desta noite.

"Eu não entendo como as pessoas podem falar sobre o facto de eu ter saltado a jaula. Então e sobre ele falar da minha religião? Fala da minha religião, do meu país, do meu pai... Ele veio a Brooklyn, parte o vidro do autocarro, quase que matou algumas pessoas. E esta merda?", começou por dizer.

“Porque é que as pessoas estão a falar de ter saltado a jaula? Não percebo. O meu pai ensinou-me: 'olha, tens de mostrar sempre respeito'. Toda a minha equipa, na Califórnia, onde treino há sete anos, todos sabem como sou. Todos os meus amigos, todos aqueles que me conhecem, sabem como é que eu sou", disse.

"Eu disse-vos. Quando o pões numa posição pouco favorável, ele vai desistir. E o que é que aconteceu hoje? Chamam-no de bicampeão mundial, em duas classes de peso, mas hoje ele desistiu [tap]. É por isso que o cinturão está aqui, indiscutível e com o invicto campeão dos pesos leves", terminou.

Quem não demorou a reagir à derrota foi McGregor que afirmou, num tweet, estar à espera de uma desforra.

Quanto ao resto, nem uma palavra.