“No primeiro jogo éramos seis. Tal qual a novela, numa pizzaria, não podia gritar nem comemorar, tinha ambiente familiar”, começou por explicar Luís Alberto Moura, cidadão brasileiro que deixou a vida de jornalista no Brasil e é estudante em Portugal.
Adepto incondicional do Clube de Regatas do Flamengo, vulgo Flamengo, lamentava não ter um sítio para ver os jogos da equipa que mora no Rio de Janeiro, mas que, segundo dizem, tem a maior legião de “torcedores” do mundo: 40 milhões.
“Conversei com o Marcelo (Caldas) e aí, Marcelo chegou com o Tiago (Fragoso), mais o Leonardo Mesquita, que não está cá hoje, depois o Filipe Vareiro... Bom ele apareceu do nada, veio do Twitter, no primeiro jogo”, resume, apresentando a “diretoria” do “Consulado” do Flamengo de Lisboa. Nomes bem lusitanos, ri. “Marcelo tem avô português”, anuncia.
O Fla-Lisboa recebeu o título oficial de “Consulado” do clube da Gávea, em março, depois de um período de formalização que durava desde dezembro do ano passado. “É o segundo na Europa”, explicou Marcelo Caldas, professor de Língua portuguesa que coleciona “mestrado e formação em Portugal”. O Porto terá o próximo. “Estamos a ajudar no processo de oficialização”, avisa Tiago Fragoso.
O projeto de expansão do clube carioca pelo Brasil e pelo mundo, os “Consulados” e “Embaixadas”, criados em 2008, procura promover a marca, expandir o número de sócios e torcedores, divulgar os valores do emblema e desenvolver ações sociais.
O estatuto oficial obriga a ter um espaço fixo para assistir aos jogos. E esse foi o primeiro passo dado pelos fundadores que vieram trabalhar e estudar para Portugal. É na Travessa do Salitre, entre o Parque Mayer e a Praça da Alegria, colado ao Hotel Lisboa Plaza, no Snooker Club Lisboa. É aqui que estão desde o “inicio de janeiro”, recorda Tiago. “Fomos crescendo”, diz, relembrando o Fla-Flu (Flamengo-Fluminense), campeonato estadual, em que “recebeu 160 pessoas”.
Acolher a sede do Consulado Fla-Lisboa que é, simultaneamente, a Penya do Futebol Clube de Barcelona é algo que Miguel Sancho, proprietário do espaço onde se joga snooker e pool, agradece. “É impressionante ver um jogo de futebol do Flamengo. Há uma enorme paixão pelo clube e comportam-se como estivessem nas bancadas”, antecipa antes da partida.
Uma rivalidade de popularidade: Corinthians-Flamengo
Leonardo Mesquita não esteve presente na noite de 30 de julho (em Portugal), que é dia, no Brasil, na 17ª jornada do Brasileirão (campeonato de futebol brasileiro), que opôs o líder Corinthians ao Flamengo. Quase todos apareceram vestidos a rigor com camisolas. Menos Luís Alberto Moura. Os diretores posam para a fotografia.
A partida disputou-se no Arena Corinthians, em São Paulo, no distrito de Itaquera, na zona leste paulista, mas em pleno coração da cidade de Lisboa estava montado um pequeno estádio com 70 adeptos. Com sofridão e emoção à mistura.
A divulgação é no Twitter e no Facebook. “Temos foto com Zico, Júnior e Júlio César (Benfica), que vieram assistir a um jogo e isso ajudou”, recorda Luís Alberto. E já são reconhecidos na Torcida no Brasil. “Temos no nosso mural (vitrina) duas camisolas de dois consulados diferentes do Brasil. Uma dada durante um dia de jogo e outra que aqui foi deixada, num dia em que não houve futebol”, revelou Marcelo. “Mesmo sem jogos as pessoas aparecem para conhecer um consulado oficial do clube”, reforça.
“O Fla-Flu é o clássico mais bonito do mundo. É belo”, explica Tiago sobre a rivalidade que os irmãos, o jornalista Mário Filho e o dramaturgo Nélson Rodrigues, ajudaram a imortalizar. A cada jogo é um “ai jesus”, como canta um dos hinos oficiais, o mais popular: “Uma vez Flamengo, sempre Flamengo”. “A nível de popularidade o grande rival é o nosso adversário de hoje. Em matéria de relevância histórica, no entanto, têm de comer muito feijão”, avisa.
Falar com a TV e para a TV
Cinco plasmas estão espalhados pela sala. O grosso dos adeptos estão concentrados perto do bar que os alimenta e refresca as gargantas. Os olhos fixos num ecrã.
Valdemar Duarte, comentador português da SIC Radical refere-se à presença surpreendente de tantos adeptos do Flamengo em São Paulo. "Surpreendente, nada, porra, somos Flamengo”, responde Tiago.
Aos 11 minutos a bola entra na baliza da equipa carioca. O árbitro anula o lance por pretenso fora de jogo. Não há vídeo-árbitro e na repetição na televisão vê-se que a decisão foi errada. “O juiz é nosso”, grita um adepto.
21 minutos golo do “Timão”. "Como é que o cara marca. Porque não fez a falta lá”, questiona Tiago, apontando jogada e jogador. Na repetição do lance solta uma asneira. Não será a única, mas estas ganham alguma piada em tons de brasileiro.
O diálogo de Tiago Fragoso com a televisão continua. Escuta-se do comentador que os adeptos do Flamengo viajaram do Rio de Janeiro. Não fica sem resposta: “não precisa não, tem muitos em São Paulo”. De imediato volta a citar o número que muitos já sabem de cor: os tais 40 milhões de torcedores.
“A bola está no teu pé e vai pedir falta!”, continua. Interage com o jogo como se fosse parte dele. Não só ele. Quem está sentado. Gesticulam e falam com os parceiros.
Os treinadores de bancada
“Somos os adeptos mais chatos”, reconhece Marcelo. Temos histórico de um team muito vencedor num curto espaço de tempo (anos 80 com o Zico) e não aceitamos menos que isso nunca. Chega perto umas vezes, outras longe”, baixa os olhos e reconhece que tem sido mais longe que perto. “Zico só existe um”, lamenta.
No futebol, a paixão e o ódio andam de braço dado. Márcio Araújo, do Flamengo, está na segunda opção dos flamenguistas. Um remate para a bancada é celebrado como uma oportunidade de golo. "Só Zé Ricardo (treinador) gosta dele”, explica Tiago que, tal como muitos da sala, não morre de amores pelo jovem técnico. “O clube que mais investiu no Brasileirão em jogadores, que tem o plantel mais caro e, no entanto, apostou num técnico demasiado novo. Muitos de nós questionamos porquê”. E o pior é que “só tem um sistema que toda a gente conhece”, acrescenta.
Bola metida pelo meio das pernas e a casa vem abaixo. Aproxima-se o final da primeira parte, o Flamengo “ganha” um livre à entrada da área e pede-se “(Paulo) Guerrero”. As preces de pouco serviram e nada de mais se acrescenta até ao descanso.
“Aí, aí, aí, assim você matou papai, você está cheirosa demais...”
“Aí, aí, aí, assim você matou papai, você está cheirosa demais...”. A música ao intervalo dá aparente folga a quem vive o jogo com intensidade. Nas mesas comenta-se. Bebem e comem enquanto a expressão “se aquele lance” rivaliza com a “como é possível”.
Gustavo Hildenbrand, vive na Indonésia, em Jacarta - “trabalho na Danone, nos iogurtes” -, mas tem casa no Estoril, comprada há mais de um ano. Está cá com a família, que está de férias durante “dois meses” enquanto ele faz “pontes aéreas”. Vê o jogo ao lado do filho, Vasco. “Ainda bem que estou cá hoje, se não estava a ver o jogo lá (em Jacarta) que são duas da manhã agora (21h00 em Portugal).
“Tivemos visita de um flamenguista de Paris, outro de Vigo, e um de Coimbra, e costumamos ter a assistir a jogos um alemão que vive em Portugal”, frisa Tiago. “Sempre que tem um brasileiro tem alguém do Flamengo”, acrescenta. “Todo o adepto que anda pelo mundo anda sempre com uma camisola”, reforça Luís Alberto. Marcelo, explica melhor esse ponto, na primeira pessoa. “Estava na Suécia, com a camisola do Flamengo vestida. Uma sueca e um inglês que vivem em Estocolmo e torcem pelo Mengão viram ... hoje são meus amigos e levei-os, recentemente, ao Maracana.
Um plantel caro que não se reflete nos resultados. Mas há esperança
Partida retomada. Guerreiro teve nos pés uma oportunidade de golo aos 51 minutos. Explosão de frustrações. Só dá Mengão.
Sintonia entre comentador e Tiago. “O Flamengo é o plantel mais caro”. Tiago acrescenta a história recente da salvação encetada pela atual “diretoria (presidente Eduardo Bandeira de Melo) que salvou o clube da falência”. Hoje, diz, “é o que tem mais receitas e a dívida está a cair. A torcida cobra que tem melhores jogadores e que, no entanto, não há correspondência com os resultados no campo”, critica. “Mas o trabalho vai dar frutos e daqui a uns anos só vai dar Flamengo”, tem esperança.
Este ano a conquista do título nacional está “longe”, virando-se atenções para a Copa do Brasil e para a Libertadores, “na qual jogará com o Chapecoense”, anuncia.
Cássio, guarda-redes do Corinthians, faz uma defesa impossível. O resultado permanece inalterado, a equipa de São Paulo segue na frente do marcador e notícias de outros campos dão conta da vantagem do Sport Recife. “Um ponto mais que o Sport. Não pode”, exclama com o dedo levantado, em referência à classificação.
O delírio na sala e a entrada do “novo” Neymar
Miguel Sancho acertou na profecia. O clube da Gávea empatou ao minuto 70. Foi o delírio. Pulos, gritos, palmas, abraços e rezas aos céus. Entra o popular hino: “uma vez Flamengo, sempre Flamengo”.
Enquanto cantavam com olhos postos na televisão e braços no ar, Diego isolado frente ao guarda-redes falha o que poderia ter sido o golo do êxtase coletivo. Há quem se contorça. Quem dê pontapés no ar e quem peça contas a alguém lá em cima. Tiago ajoelhou-se, quase que atirando a toalha ao chão, por hoje, aceitando o destino.
“Apesar do futebol coletivo, tudo gira em torno de um grande craque. Que faz a diferença. Ronaldo, Messi e nós temos o Diego (ex-Porto), que não é a mesma coisa”, lamenta Tiago. O falhanço parece dar-lhe razão. “Ninguém falha um lance desse”, exclama frustrado. Filma os cânticos com uma Go Pro para meter nas redes sociais.
Na televisão, é relembrada a derrota a meio da semana (4-2) frente ao Santos. Uma recordação que não é bem-vinda na sala. Entra Vinícius Júnior, o tal que aos 16 anos custou 45 milhões euros ao Real Madrid, cuja camisola só irá vestir no verão de 2019. É o delírio cada vez que toca no esférico. “É o novo Neymar”, protagoniza Tiago.
Bola na barra do Corinthians. Soltam-se ais! Muitos ais!!! E uis! com o único remate de verdadeiro perigo do onze que joga em casa e que proporciona uma defesa celebrada como um golo.
Apito final. “Porra!”, grita. “Merecia ganhar”, lamenta Tiago Fragoso, enquanto responde a mensagens no telemóvel e cumprimenta um adepto que atira. “Não tenho coração para isso!”.
Entra outra vez o hino e os adeptos abandonam a sala. “A ideia é que isto seja um estádio”, remata Tiago Fragoso. Foi. Fechou-se o pano no futebol e prosseguiu a outra atividade que ali traz apaixonados. No caso, o snooker. Agora, sem barulho.
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