Equipa gaulesa juntou um velejador e um homem do mar e dos vinhos para conseguir o que ainda não tinha conseguido. Falhou, não será o desafiante na 37.ª America’s Cup, mas os “donos” querem criar um legado e ocupar um espaço que permanece em branco.
Sob o “Alto Patrocínio do senhor Emanuel Macron, Presidente da República de França”. A frase, num estático pop up, salta no topo do site da Orient Express Racing Team -, equipa de vela francesa que competiu na Louis Vuitton Cup (Challenger Seletion Series), em Barcelona, de 29 de agosto a 9 de setembro.
O apoio do chefe de Estado francês, muito para além do informal, revestiu-se de uma auréola de patriotismo à volta da equipa gaulesa, uma das cinco que tentou ser o challenger (desafiante) da 37.ª America’s Cup Louis Vuitton, 12 a 20 de outubro.
O suporte vindo do Eliseu não despontou avulso. Viajou acompanhado do patrocínio de grandes marcas francesas, da cosmética (L’Oréal), à indústria automóvel (Alpine), passando por turismo e viagens (Accor, Orient Express e ALL.com) e um aglomerado que reúne da indústria fotográfica a lavandarias (Photomaton ME Group). Contou ainda com o empurrão da tecnologia de ponta da incubadora K-Challenge e de todo o know-how náutico desenvolvido na região de Lorient, uma das “capitais” da vela francesa. Juntos vestiram a ambição da Orient Express Racing Team.
A treinarem no barco AC75, um monocasco voador, desde abril na capital catalã, contudo, chegados à competição, em setembro, os franceses falharam na fase de round robin da Louis Vuitton Cup. À imagem do passado, a equipa em representação da Société Nautique de Saint-Tropez volta a falhar no “apuramento” para o match race final da Taça América de vela.
Mais uma vez, a história pesou e na regata onde “não há o segundo lugar”, voltaram a não ter sequer possibilidade de ser segundo. Disseram “au revoir” e não vão desafiar o vencedor em título da America’s Cup, Emirates Team New Zeland, direito esse a sair do duelo entre ingleses (INEOS Britannia) e italianos (Luna Rosa Prada Pirelli).
Todavia, desaire à parte, os franceses querem construir um legado novo numa área onde são assumidamente fortes, a vela, mas cuja ausência da regata a dois quase bicentenária constitui um pesado “espaço em branco” por preencher no palmarés.
De únicos a intermitentes na mais antiga competição do mundo
O SAPO 24 acompanhou a Orient Express Racing Team na cidade catalã, uma equipa e um país esperançado em levantar voo na competição mais antiga no mundo e que supera em prestígio e mediatismo todo e qualquer outra regata, colocando em segundo plano as voltas ao mundo da ex-Volvo Ocean Race e da Vendée Globe.
Disputada desde 1851 entre dois sindicatos, durante 132 anos o troféu só conheceu uma morada: EUA, vencedores de 1851 a 1983. Nesse ano, mudou de mãos para o Australia Royal Perth Yacht Club.
Em 2000, na 30.ª edição, pela primeira vez, a disputa não teve a presença da bandeira americana. A final, em Auckland, foi discutida entre italianos e o defender, Team New Zealand, com a vitória a pender para a embarcação kiwi.
Três anos depois, o bilionário suíço, Ernesto Bertarelli, elevou a equipa helvética da Alinghi, em representação do Switzerland Société Nautique de Genève, a primeiro vencedor europeu do troféu conhecido como Auld Mug. Repetiria a graça em 2007.
Recuemos, no entanto, ao início da década de 70 do século passado. 1970 marcou uma viragem na America´s Cup. Abriu-se ao mundo, a países e equipas, e o desafiante passa por uma prova prévia a eliminar. Entra aqui a narrativa da história francesa.
A França entrou em campo de 1970 a 2007, e, juntamente com os Estados Unidos da América (EUA), foi o único país a competir em todas as edições do Challenger Selection Series nesses anos. Após 2007, Valência, os franceses fizeram uma pausa, voltaram a içar a bandeira em 2017, desapareceram do mapa em 2021 e regressaram, de novo, em 2024, ano em que a regata cumpre 173 anos. Pese embora a tradição de velejadores e construtores, a Taça teima em escapar à nação gaulesa.
“Luto contra a ideia preconcebida de que a America’s Cup é muito dinheiro”
O projeto Made in France nasce de dois velejadores experimentados e mundialmente reconhecidos, Bruno Dubois e Stephan Kandler e o desígnio e sonho de ambos passa por manter, em permanência, a França no mais antigo troféu entre nações.
A K-Challenge, criada em 2021 por Kandler, começou por despejar cimento nesta dupla ambição. “Começámos a equipa há dois anos”, explicou Dubois, belga-canadiano que liderou a Team França na 35.ª Taça América, venceu a Volvo Ocean Race com Dongfeng Race Team, equipa sino-francesa, e manager da France SailGP Team.
“É um desafio trazer de novo uma equipa francesa e mantermo-nos em jogo. Tem sido intermitente, queremos a continuidade do projeto, manter a equipa e estar preparados para múltiplos eventos”, apontou Bruno Dubois na base da Orient Express, no porto de Barcelona, dias antes da eliminação da LV Cup.
“Queríamos ter uma voz nesta campanha, embora soubéssemos que começámos mais tarde. Adquirimos o design ao barco vencedor de 2021 (aos neozelandeses). Tivemos bons e maus resultados e aprendemos todos os dias”, enfatizou Stephan Kandler.
“Tudo começou em 2021. Vi a America’s Cup e pensei que podíamos fazer uma equipa. Conversei com o Bruno e disse que seria boa ideia se fossemos os dois” - recordou.
“Havia que arranjar dinheiro, encontrar e construir a equipa”, apontou, crente que a França teria, e tem, credenciais para ocupar um lugar no mundo da inovação náutica. “O investimento foi menos de 50 milhões de euros, não é muito dinheiro, fomos mais de 100 pessoas em Barcelona, as famílias, o barco...não é muito”, detalhou.
“Luto contra a ideia preconcebida de que a America’s Cup é muito dinheiro. Não é se pensarmos como um desporto que envolve entre 100 a 200 pessoas, famílias, que se mudam três anos para um sítio. É duro conseguir por menos”, assegurou Kandler.
Bruno Dubois reforça. “(O troféu) recentemente reorientou-se do ponto de vista comercial para atrair patrocinadores, porque custa muito dinheiro” admite. O investimento dos patrocinadores é grande, “mas depende sempre do retorno desse investimento”, disse, sem parcimónia. “Se conseguirmos criar uma plataforma na qual (os patrocinadores) se sintam satisfeitos ...”, deixa em suspenso.
Uma boa base e um bom produto para o futuro francês
Coloca o dinheiro numa gaveta e abre a da ambição. “Quando acordei e vi o que tinha feito. Criei uma boa base de trabalho, um bom produto para que a França seja competitiva no futuro, não pare e produza mais talentos como se vê pela competição da Taça América da Juventude (com o AC40, réplica mais pequena dos AC75, os franceses seriam eliminados na fase de grupos da 3.ª edição da prova) e a Taça América Feminina (em estreia absoluta, de 5 a 13 de outubro)”, antecipou Dubois.
A Orient Express Team, que contou com a presença, na equipa de terra, do antigo velejador olímpico português, Miguel Nunes, ficou atrás de ingleses, italianos, suíços e norte-americanos. Viriam a terminar em 6.º lugar e só venceram uma regata, em 10.
Os resultados não matam o otimismo dos “donos” da equipa. “Temos uma boa plataforma para o futuro. Farei 65 anos e que aqui foi feito foi algo especial para mim. Fiz o que podia ser feito para assegurar o futuro, fiz o meu trabalho para que fiquem satisfeitos e continuarei envolvido”, ajuizou Dubois.
“Éramos uma equipa nova que tinha de ser competitiva nos dois anos seguintes da America’s Cup. Foi a nossa aposta e vemos quão duro é chegar a este nível. Há equipas com seis Taças Américas e anos de experiência”, comparou Kandler. “Queremos criar uma organização para estar na America’s Cup e no sailGP. É um know-how que tens de construir, uma equipa de velejadores e treinadores”, frisou Stephan Kandler, CEO da Orient Express Racing Team e proprietário de duas vinhas no sudoeste de França, Château Tourril, Narbonne, e Domaine des Pentelines, Rhone Valley.
AC75: Um campo de ténis a voar na água a 100 km/h
Chegados a este ponto, falta só falar do barco e da escolha do design. Quem vence a Taça América escolhe não só o local onde decorrerá a próxima regata, como também indica o tipo de barco, conforme gravado no sagrado livro de regras.
Surpreendentemente, o Emirates Team New Zealand, vencedor em 2021, escolheu o campo de regatas da cidade Condal e alargou para todos o uso do AC75, então utilizado pelos neozelandeses, iniciando-se uma nova era na competição.
O AC75, monocasco voador de fibra de carbono, assente em foils, quase do tamanho de um court de ténis e um mastro de 18 metros, é capaz de atingir 45 nós (83 Km/h), mas sábado, os italianos ultrapassaram, pela primeira vez, os 100 km/h (55,2 nós).
A inovação é o farol do AC75 cuja composição da tripulação em nada se assemelha ao passado. Quatro ciclistas-velejadores ("cyclors") escondidos nos cascos da máquina voadora cuja força de pernas produz a energia hidráulica para puxar as velas e rodar o mastro e quatro velejadores puros (dois trimmers e dois timoneiros). Uns pedalam, outros dão indicações, todos de capacete e comunicação herdada dos aviões.
“Quando se fazia com as mãos, já era um estilo diferente, um jogo diferente no barco. Agora, os condutores (drivers) estão sentados, só tocam nos botões e não andam de um lado para o outro no barco. Na parte de trás, quem pedala tem de estar a nível olímpico”, referiu Stephan Kandler.
“Mudou o jogo e é isso que gosto na America’s Cup. Há tanto para construir uma equipa, é um gigante puzzle e o pequeno pormenor pode “matar-te” na regata e temos de viver com isso”, realçou. “É como a Fórmula 1, para teres uma equipa campeã demora anos e de repente alguém aparece como uma nova ideia melhor, desapareces e reapareces. É fantástico”, finalizou.
*O SAPO24 viajou até Barcelona, palco das Louis Vuitton Cup, a convite da Orient Express Saling Team
Comentários