Na longa sentença proferida no final do julgamento dos recursos apresentados pela KPMG e cinco dos seus associados às coimas de perto de cinco milhões de euros aplicadas pelo Banco de Portugal (BdP), em junho de 2019, por violação de normas que deveriam ter levado à emissão de reservas às contas consolidadas do Banco Espírito Santo (BES), a juíza Vanda Miguel expôs os motivos que a levaram a julgar “totalmente procedente” a impugnação judicial, revogando a decisão administrativa e absolvendo todos os recorrentes.
Começando pelo ponto que mais discussão gerou durante o julgamento iniciado no passado dia 03 de setembro no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS), o da interpretação da alínea c) do n.º 1 do artigo 121º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), relativo ao momento em que devem ser comunicados factos suscetíveis de gerarem reservas às contas de uma instituição financeira, a juíza considerou que o entendimento do BdP “não está de acordo com as ‘legis artis’ e com aquilo que é o normal na vida de auditoria”.
Vanda Miguel afirmou mesmo ter ficado em “sobressalto” com a resposta “vaga” do BdP ao ofício que o TCRS lhe endereçou para saber quantas comunicações de potenciais incumprimentos tinham sido feitas ao supervisor em fase interina de uma auditoria, sublinhando que apontar um número concreto em nada “colidiria” com o “segredo bancário” invocado pelo regulador.
Declarou ainda “estranhar” que o supervisor tenha afirmado não ter qualquer outro processo contraordenacional sobre esta matéria, dado o entendimento generalizado de auditores e auditados ouvidos em julgamento contrário ao do BdP.
Como concluiu, só após esgotar todos os procedimentos de auditoria é que o auditor tem o dever de comunicar e não enquanto decorre o processo interino de análise de informação, como pretendia o BdP neste processo.
Concluindo pela correção do trabalho realizado pelos auditores externos do BESA e do BES (KPMG Angola e KPMG Portugal), perante a informação de que dispunham, Vanda Miguel fez uma análise exaustiva a factos que pesaram na decisão administrativa, como os relativos ao conhecimento das atas das duas sessões da assembleia-geral do BES Angola, realizadas a 03 e a 21 de outubro de 2013, e nas quais esteve presente Ricardo Salgado, e sobre a emissão da garantia soberana do Estado angolano, a 31 de dezembro de 2013, para cobrir eventuais incumprimentos da carteira de crédito do banco, tema que dominou aquelas reuniões.
Para Vanda Miguel, o que é relatado nas atas da assembleia-geral do BESA de outubro de 2013 “é um mero pedaço de vida” do banco, “que não tem a virtualidade de poder servir para afirmar que não existia informação suficiente […] para que pudesse ser realizada uma auditoria externa conscienciosa” nos exercícios de 2011 e 2012.
Sublinhando que existiram outras auditorias/inspeções feitas ao BESA por outras entidades, “que nunca apontaram a existência de falta de informação relevante”, a juíza refere a “ironia” de “a única entidade que colocou reservas”, por “não conseguir contabilizar as provisões para efeitos locais”, ter sido “precisamente a KPMG Angola”.
Na sentença, lida terça-feira, o TCRS refere a “estreita ligação” entre as entidades de supervisão portuguesa e angolana, frisando que nunca o Banco Nacional de Angola (BNA) reportou ao BdP “qualquer problema grave na carteira de crédito do BESA”.
Segundo o tribunal, é o próprio BNA que declara que esta contém essencialmente créditos concedidos ao Estado e a empresas públicas angolanas, motivo pelo qual o crédito vencido “era pouco significativo e as provisões adequadas”.
No julgamento estiveram em causa os pedidos de impugnação apresentados pela KPMG (condenada pelo BdP ao pagamento de uma coima de 3 milhões de euros), o seu presidente, Sikander Sattar (450.000 euros), Inês Viegas (425.000 euros), Fernando Antunes (400.000 euros), Inês Filipe (375.000 euros) e Silvia Gomes (225.000 euros).
Tanto o Banco de Portugal como o Ministério Público fizeram saber que vão recorrer para a Relação da decisão do TCRS.
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