"Se as abelhas desaparecerem da face da terra, a humanidade terá apenas mais quatro anos de existência". A frase é frequentemente atribuída a Albert Einstein, mas faltam provas. A visão apocalíptica, porém, é sempre um bom arranque de conversa quando o tema é abelhas.
As obreiras (ou operárias) vivem até 40 dias quando estão no pico da produção, e nos 21 que perfazem a sua vida adulta percorrem mais de 800 quilómetros para recolher néctar e pólen para alimentar a colónia — e os humanos.
"Mas eu nem sou apreciador de mel..."
Nem só de mel vivem os humanos. Uma das mais importantes funções das abelhas é a polinização: "As plantas para frutificarem têm se reproduzir, têm de polinizar", explica Manuel Gonçalves, presidente da Federação Nacional dos Apicultores de Portugal (FNAP).
Sem este trabalho das abelhas, "que não é quantificável e não tem retorno adicional para o apicultor", e cujo "valor criado é talvez maior do que o da produção de mel", "não teríamos maçãs ou morangos, não teríamos muita coisa, nomeadamente todos os frutos", acrescenta Bruno Martins, presidente da Federação Nacional de Cooperativas Apícolas e de Produtores de Mel (Fenapícola).
"Sabemos que passaram a vida a trabalhar para chegarem ao momento em que vão passar a vida a trabalhar". É isto que Barry B. Benson, a mais famosa e destemida abelha do mundo da animação ("Bee Movie - A história de uma abelha") ouve no seu primeiro dia de trabalho. Afinal, as abelhas são responsáveis por polinizar mais de um terço das plantas do planeta, pelo que o seu declínio populacional pode originar uma catástrofe alimentar.
Apesar da riqueza criada pela polinização não estar quantificada, sabe-se que "os benefícios deste serviço traduzem-se em aumentos no valor comercial dos frutos, do teor de óleo das sementes, do tempo de conservação dos frutos, entre outros aspetos". A título de exemplo, a polinização pode gerar um aumento de 37% na produção de girassol ou de 500% na cebola. As conclusões e cálculos são do Programa Apícola Nacional 2020-2022.
Em Portugal, "a utilização de colmeias para o serviço de polinização é ainda pouco usual, com apenas alguns apicultores de maior dimensão a rentabilizarem as suas explorações apícolas através dos contratos de polinização", pode ler-se ainda neste relatório.
Bruno Martins, que é apicultor profissional e tem a seu cargo cerca de 1500 colmeias, explica que as coisas estão a mudar aos poucos, mas "não existia tanto esse conhecimento, de que pagar a um apicultor para polinizar não é um custo, mas um investimento". No estrangeiro este tipo de serviços já é comum. Na Califórnia, por exemplo, "milhares de colmeias são levadas pelos apicultores para as plantações de amendoeiras. O agricultor aumenta a quantidade e qualidade do seu produto — os frutos com melhor polinização não são deformados ou mais pequenos, são mais homogéneos — e o apicultor recebe um valor pelo serviço prestado".
Esta realidade é retratada no documentário "Podre: Advogados, roubos e Mel (2019)": em 1990 a Califórnia tinha mais de 160 mil hectares de amendoeiras, atualmente tem mais de 400 mil. E como o mel não paga as contas, os apicultores atravessam o país com as suas abelhas em camiões para irem polinizar estas explorações em fevereiro e março. O serviço não é isento de custos para os apicultores, além do transporte e da alimentação das suas colmeias, correm o risco de voltar para casa com abelhas menos saudáveis, porque há uma sobrepopulação de animais num só local, com abelhas de vários pontos do país a conviverem, podendo transmitir doenças, diz um dos apicultores deste documentário. "É como convidar toda a gente que chega a um aeroporto a ir para sua casa", exemplifica. As abelhas, todavia, são fieis à sua rainha ou à sua colmeia, pelo que não de misturam e regressam sempre a casa.
Mas a dimensão do caso norte-americano está longe da realidade nacional. Por cá, Manuel Gonçalves reconhece que um dos desafios do setor é "apostar" nesta dimensão de serviço e "sensibilizar os agricultores para contratar apicultores para fazer a polinização dos seus campos", mas não é a única. "O outro desafio do setor é a concentração do produto, a criação de marcas próprias, porque o produto vende-se por si e não é só no mercado da saudade", enuncia.
Em resumo, falta dimensão ao mercado nacional, o que este pode compensar em qualidade. "Somos um país de pequena dimensão, mas temos muita diversidade de mel nas nossas regiões. A norte o mel de castanheiro, eucalipto e urze, mais escuros; a sul mel mais claro. Temos o mel de alecrim... Enquanto setor devemos apostar na qualidade, nos produtos biológicos, que são uma oportunidade crescente e talvez seja essa a nossa saída", diz Bruno Martins.
Considerando que "o mercado global e a grande distribuição procuram muitas vezes preço", é difícil a um país com a capacidade produtiva de Portugal entrar numa guerra de preços. "Chega mel cá a 1,60 euros e assim é impossível nós vendermos o mel corrente a pelo menos a três euros, para cobrir os custos do apicultor", exemplifica. "Podemos dizer que o nosso mel multiflora é melhor do que o que chega de outras partes, mas quem procura um mel indiferenciado não lhe interessa se é este ou aquele. Já se quiser mel de rosmaninho vai procurar um produto com essas características específicas e isso permite valorizar o produto".
Os dados mais recentes remontam a 2018, altura em que estavam registadas em Portugal quase 768 mil colmeias (+ 25% face a 2015) e 11.883 apicultores. Um apicultor profissional é aquele que tem mais de 150 colmeias, mas isso não é suficiente para garantir a subsistência de um produtor. No entanto, a atividade tem sido tradicionalmente encarada como um hobby ou um complemento. Assim, 53% dos apicultores têm entre 1 e 24 colmeias, apenas 9% têm entre 150 e 499 colmeias. Só 2% dos apicultores têm mais de 500 colmeias e, diz Bruno, ganhar a vida com a profissão só é possível bem acima deste patamar.
O setor está organizado essencialmente em Organizações de Produtores (OP), que ainda carecem de uma organização de fileira que lhes permita, tal como referia Manuel Gonçalves, concentrar o produto e criar uma estratégia de promoção nacional do mesmo.
Ainda assim, desde 2009 que se verifica a um aumento crescente da produção de mel nacional, com uma produção em 2017 de 14 mil toneladas (valor que duplicou entre 2009 e 2017). Contas feitas, Portugal exporta tanto mel quanto importa. Os dados mais recentes são referentes a 2016/2017 e as contas são simples: o país consome 14 mil toneladas, exporta 5 mil toneladas e importa outras 5, o que significa que o grau de autoprovisonamento ronda os 100%.
Quando olhamos para preços, porém, a balança comercial (a diferença entre importações e exportações) apresenta uma grande variação. Se em 2016 o saldo positivo foi de 1,896 milhões, no ano seguinte foi apenas de 405 mil. Em média, os preços a que Portugal importa são muito inferiores aos preços a que exporta (por vezes, na ordem dos 100%). A título de exemplo, o preço médio de entradas rondava os 2 euros em 2017, enquanto o preço de saídas era de 3,40 euros.
Vale a pena olhar para fora para melhor enquadrar a realidade nacional. Todos os países da União Europeia produzem mel, o que faz do bloco o segundo maior produtor mundial (250 mil toneladas), ficando atrás da China — só na Ásia produz-se cerca de 732 mil toneladas por ano. Estamos a falar de 17 milhões de colmeias na União Europeia e 600 mil apicultores. Os maiores produtores da UE (dados de 2015) são a Roménia (35.000 t), Espanha (32.500 t), Hungria (30.700 t) e a Alemanha (23.400 t) — todos localizados no sul do bloco, onde as condições climáticas são mais favoráveis à apicultura.
No entanto, e apesar de ser o segundo maior produtor de mel, isso não chega para o consumo da União Europeia. Aliás, a sua produção de mel apenas supre 60% das necessidades. Para compensar a falta, a UE importa sobretudo à China, seguida pela Ucrânia e pelos países da América Latina.
Estes números (14 mil toneladas em Portugal vs 35 mil toneladas na Roménia ou 732 mil toneladas vindas da Ásia) ajudam a perceber por que razão o preço não será um fator de competição para a produção nacional. No entanto, insiste Bruno Martins, "começa a haver cada vez mais atenção do consumidor para produtos nacionais e por procurar alguma qualidade. O mercado em crescendo dos produtos biológicos é um exemplo e isso pode ser bom para o mel português". Mais uma vez, para atingir esse objetivo, é preciso ultrapassar "uma das grandes dificuldades do setor, que é a organização, para ganhar dimensão".
A "falsificação" do mel é outro dos temas 'core' no setor, com os países asiáticos no centro das preocupações. Um relatório da União Europeia em 2013 coloca o mel como o sexto alimento mais suscetível de fraude alimentar. E as estratégias são várias: vender mel multifloral (corrente) como mel monofloral a um preço mais alto, adicionar açúcares e xaropes para aumentar o volume da produção ou até colher o mel antes de tempo e secá-lo em grandes fábricas de mel, reduzindo tempo e custos. Nestes casos, quando o consumidor compra mel, pode estar na realidade a gastar dinheiro num produto que está muito longe da ideia "natural" ou "pura", tantas vezes associadas a este produto.
A estes desafios soma-se o das alterações climáticas, do clima irregular aos incêndios. "Estamos em maio com frio e chuva, da mesma forma que em março tivemos 26 graus, para não falar da seca que atingiu o país há alguns anos. Isso obriga o apicultor a fazer mais deslocações e a investir na alimentação artificial das colmeias para as manter vivas", explica Bruno Martins. A praga da "vespa asiática" — que mata as abelhas ou as impede de produzir porque ficam estas "à porta" da colmeia para se protegerem, consumindo as reservas que têm e morrendo lentamente — só veio acrescentar mais uma dificuldade a esta equação. E quando se fala de incêndios, é preciso recordar que os prejuízos para o agricultor não se esgotam na perda de animais ou de equipamentos.
"A apicultura nacional vive de flora espontânea e isso demora o seu tempo a ser regenerado. Mesmo que o apicultor queira voltar logo a investir, a flora característica de uma região pode levar anos a recuperar. Depois dos incêndios de 2017, se calhar só agora é que estamos a recuperar alguma normalidade", exemplifica o apicultor.
A agricultura 4.0 pode dar uma ajuda para contrariar os revezes da natureza — "já há equipamentos que são capazes de recolher dados da colmeia, como peso, humidade, temperatura, atividade ou ruído, e partilhar isso numa aplicação que o apicultor pode consultar" —, mas "quando falamos de apicultura isto está tudo ainda numa fase muito inicial, pelo que os custos são ainda elevados e não há escala", diz Bruno Martins.
"Uma coisa é certa, hoje custa quase o dobro produzir um quilo de mel do que há dez anos", conclui.
Para ver:
- Com os mais pequenos: A História de uma Abelha (2007)
- Sozinho ou bem acompanhado: Podre: Advogados, roubos e Mel (2019)
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