Não somos pessimistas; acreditamos consistentemente num futuro melhor. Mas a observação fria do que se passa neste mundo leva a observar, com perplexidade se não com preocupação, como evolui a humanidade.
A Terra aquece, a água potável já é um bem ameaçado, as calotes geladas derretem e os desertos crescem, sem que se consiga um programa eficiente e aceite universalmente para inverter estas tendências. Por outro lado, a população cresce exponencialmente, com capacidades de sobrevivência cada vez mais díspares. Por outro lado, ainda, os nacionalismos engalfinham-se, as opiniões antagonizam-se, as questões territoriais agudizam-se e um talvez impossível equilíbrio entre crescimento e sustentabilidade parece cada vez mais improvável.
A juntar a isto, ou talvez consequência disto tudo, figuras internacionais, que talvez pudessem resolver as crises, parecem cada vez apostar mais em resolver a sua sobrevivência e permanência no poder. É preciso injecções diárias de optimismo não ser pessimista.
Sempre houve dirigentes bons e maus – para os seus próprios cidadãos, ou para os que vêem com inimigos – mas este ano que passou, e que é um ano sem nenhuma característica especial na rotação da terra, pois não acabou uma década nem começou um mau aspecto astral, este ano foi glorioso para os maus. De Este a Oeste, de Norte a Sul, as pessoas perigosas e imprevisíveis que governam o Mundo (se realmente são elas que mandam, é outro assunto), eleitas democraticamente ou aldrabadamente, conquistadoras ou manobradoras, parece que sobrepõem a sua vontade aos Direitos Humanos, aos ditames religiosos, ou à vontade dos deuses. Foi um ano em que recuamos e não avançamos, nitidamente.
O calendário é uma invenção científica/religiosa congeminada há 2020 anos e universalizada pela política, apenas um código de referência como qualquer outro; os astros giram continuamente, as gerações sucedem-se e sobrepõem-se, as borboletas continuam a bater as asas e a matéria morta a decompor-se. Mas a passagem dos anos é referência útil para ir estabelecendo balizas e, sobretudo, fazer comparações entre o passado e o presente, e extrapolar o futuro. Deixando o passado, que já todos sabemos como foi, e não prevendo o futuro, que é muito arriscado, temos este presente periclitante, marcado por mais uma volta da Terra em torno do Sol. Em todos os continentes, dos Estados Unidos às Filipinas, do Reino Unido ao Brasil, da Rússia à Coreia, parece que os discutíveis e indiscutíveis, a que chamaremos sucintamente os maus para poupar papel e resumir uma variedade de desagradáveis, tiveram um ano em cheio. Há quem os defenda, com certeza, se não, não se aguentariam lá; mas numa opinião generalizada, o mundo estaria melhor se eles em vez de mandar estivessem a plantar batatas ou a puxar uma carroça. A História é assim, instável e surpreendente.
Podemos começar pela Europa, o nosso berço, cultura e região privilegiada do globo, segundo opinião invejosa das outras regiões.
De Portugal, preferimos não falar; reguila da Península (1385), a seguir Império gerido atamancadamente (séculos XV e XVI), depois miséria administrada de fora (século XIX), finalmente num remanso pobrezinho, a empurrar com a barriga a sua pequenês sem ambições. Os maus são apenas mauzinhos, os que se acham bons queixam-se no Facebook, e não vale a pena dizer mais nada. 2019 foi um ano como os outros, com a Justiça eternamente fraca, a Administração incipiente, a vidinha do “vai-se andando”.
Já no chamado Reino Unido, foi um ano emocionante. O mau de serviço, Boris Johnson, alcantilado ao Poder pelas incongruências do Império morto há cem anos, teve um 2019 em cheio. Conseguiu o que queria, é o coordenador alegre do esfarelamento do país, satisfazendo o seu ego com a promessa dum futuro que se imagina catastrófico.
Na Hungria, um belo exemplar das novas autocracias democráticas, Victor Orban consolidou o seu poder, escavacou o sistema judicial, calou a oposição, e continua a viver à custa dos subsídios (fundos de coesão, é como se chamam), enquanto maltrata abertamente os coitados que lhe vêm pedir abrigo. As últimas imagens do ano mostram-no sorridente ao lado do seu novo amigo Putin.
Na Polónia, que continua nas mãos do partido Justiça e Lei, Andrzej Duda e Mateusz Moravieckl conseguiram impor a dependência oficial do país ao carvão, recusando-se a aderir a essas suspeitas ideias ecológicas, sem que ninguém os penalizasse, assim como mantêm a mão de ferro sobre questões de igualdade de género, IVG e outras modernices. Este ano continuaram a receber um apoio popular indiscutível.
Mais a Sul, na Turquia, Recep Tayyp Erdogan esteve imparável. Esmagada a oposição (as derrotas eleitorais nas grandes cidades pouco representam) expandiu-se para a Síria, finalmente massacrando às claras os curdos, prepara-se para “ajudar” a Líbia e foi recebido triunfalmente por Trump. O seu sonho do Império Otomano ganhou este ano muito território e a compreensão de aliados (EUA) e adversários (Rússia) que até já lhe vendem armas. Já não quer aderir à decadente Europa – para quê? – que mantém-na refém com a ameaça de enviar milhões de refugiados, pelos quais recebe grandes quantias. Um grande vencedor de 2019, sem dúvida.
E não nos podemos esquecer de Bashar al-Assad, que passou de pária isolado no seu palácio ao controlo da maioria do território sírio, ajudado pelos russos e tolerado pelo Ocidente que o desprezava. Em 2019 al-Assad protagonizou a maior reviravolta da política contemporânea. É verdade que não olhou a meios, gazeando sistematicamente parte do seu povo, mas ninguém tinha conseguido tal proeza. É como se Hitler em 1945 saísse do bunquer e voltasse a fazer comícios em Nuremberg.
E mais a Norte temos Vladimir Putin, o político mais competente desta década. Não há nada que não tenha conseguido: desestabilizar a Europa, ocupar o Sul da Ucrânia, estabelecer uma base firme na Síria, influenciar eleições onde lhe aprouve (EUA, Reino Unido), assassinar inimigos internos e exilados, e ser o mentor de Donald Trump. O seu sonho de recriar a URSS em moldes ditatoriais – putinistas e não proletários – vai de vento em poupa.
Quanto à América Central e do Sul, Ortega na Nicarágua e Maduro na Venezuela conseguiram, contra toda a lógica, probabilidades e decência, manter o seu poder intocado, reprimindo as populações famintas com eficiência e determinação. Para ambos, manter-se no Poder já é uma vitória notável. E, no Brasil, um Bolsonaro, que nem para porteiro de condomínio serviria numa sociedade civilizada, conseguiu, com o apoio dos militares, evangélicos e grandes fazendeiros, dar passos decisivos para a criação da República Evangélica. Talvez não consiga – os brasileiros são muito religiosos, mas também muito apreciadores da boa vida – todavia teve um ano muito acima das suas possibilidades. Com um governo de ópera bufa, conseguiu manter a nona economia do mundo a carburar.
No Oriente, podemos começar por Kim Jong-um, que teve um ano espectacular. Ao ser recebido por Donald Trump, pode finalmente vender com credibilidade ao seu faminto povo que a Coreia está ao nível dos Estados Unidos na cena mundial. Experimentou à vontade as suas armas nucleares, que já constituem uma séria ameaça aos países limítrofres; e não teve de ceder nada em troca. O terceiro rei da dinastia comunista Kim tem-se revelado um estratega extraordinaire.
Ao seu lado, o gigante Xi Jinping navega a todo o vapor. É verdade que Hong Kong foi uma pedra no sapato, mas os chineses pensam a longo prazo e ninguém duvida do desfecho da teimosia da ex-colónia inglesa. Por outro lado, meteu na ordem os dois milhões de uigurs que insistem em ser muçulmanos. E o seu projecto da Nova Estrada da Seda, que consiste basicamente em dominar o mundo através do comércio, está de vento em popa. Consolidado o poder internamente, uma vez que no último congresso do PC chinês foi nomeado para a eternidade, Xi está a caminho de ser o homem mais poderoso do mundo. Desde 2013, quando foi escolhido pela primeira vez para Presidente, que a sua estrela não pára de ascender. O Império do Meio é cada vez mais o Império Jinping.
Ainda na Ásia, uma palavra de apreço para Duterte. Quando as Nações Unidas criticaram a brutal repressão aos supostos drogados nas Filipinas, saiu das Nações Unidas, sem consequências. Declarou publicamente ter assassinado várias pessoas e massacrado uma aldeia inteira, sem perder o apoio da maioria da população. Em termos de ousadia e pouca vergonha, Duterte é um exemplo.
E, finalmente, temos o Donald. Nunca, numa democracia ocidental, um presidente mentiu tanto (confirmado diariamente pelo fact check de vários órgãos da comunicação social e institutos), deu tantas reviravoltas de opinião, tratou as mulheres (física e vocalmente) com tanto desprezo e fez tantas declarações obtusas – além de, sistematicamente, deitar abaixo regras de protecção ambiental e social que levaram décadas a construir. Meteu os imigrantes em campos de concentração, separando pais e filhos; e menosprezou todos os aliados tradicionais dos Estados Unidos, fazendo elogios aos adversários. Este ano, para culminar da sua inimputabilidade, saiu ileso duma tentativa de destituição que ainda está em curso, mas cujo desfecho já se sabe.
Falámos de todos? Com certeza que não. Deixamos de fora muitos países de África e figuras menos internacionais, como Sissi, no Egipto, ou velhos vencedores, como Netanyahu, em Israel. Ou ainda Narendra Modi, na Índia, que acabou com o estatuto especial de Cachemira e quer acabar com os muçulmanos do país.
Estes são apenas os mais notáveis, ou mais públicos, de uma plêiade de figuras que brilharam em 2019 e, ao que tudo indica, brilharão em 2020.
Assim caminha a Humanidade. “Apertem os cintos, porque vai ser um percurso acidentado”, como dizia a grande pitonisa Mae West.
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