Em maio, o senador republicano norte-americano Ben Sasse: afirmou “as guerras modernas fazem-se com semicondutores”. Sasse, que é um grande crítico da China, deve saber do que fala, uma vez que pertence à Comissão de Investigação (“Intelligence”) do Senado e tem mais informação sobre o mundo digital do que o comum dos mortais. Mas não está sozinho, nem os Estados Unidos são o único país preocupado com a “ameaça” do 5G. Ainda na semana passada, o Reino Unido tomou uma posição radical contra a Huawei, enquanto a França ameaça restringir as operações da empresa, assim como a Alemanha. A Austrália impediu completamente as suas operações, assim como, evidentemente, os Estados Unidos.
Desde 2012 que todos os países digitalmente avançados se interessam pela tecnologia 5G e muitos têm investido em empresas nacionais para garantir uma posição no que será o futuro padrão de de telecomunicações. Mas ninguém avançou tanto no processo como a Huawei, que opera em 170 países – ou seja, em quase toda a parte.
Convém talvez dizer o que é o 5G, para quem esteve confinado nos últimos dez anos, ou simplesmente é mais desligado destas coisas de telecomunicações e tecnologia que cada vez ligam cada ponto das nossas vidas. Trata-se de um novo padrão de telecomunicações (o presente é o 4G) que irá suportar praticamente todos os aparelhos da nossa vida pessoal, doméstica e pública. É o que tornará corriqueiro, um exemplo entre milhões, que possamos ligar a nossa máquina de café antes de chegar a casa, ao mesmo tempo que o nosso fornecedor de café toma nota do consumo para nos enviar nova encomenda na altura certa, o que por sua vez fará com que um produtor de café ligado aos compradores saiba quanto tem de plantar, e o circuito de produção de açúcar também se adapte à procura, sem falar nos fabricantes de máquinas para esses sectores. Enfim, resumindo, tudo estará ligado de alguma maneira, criando uma verdadeira “vida digital” que corre paralelamente à vida real de todos e cada um.
Do ponto de vista do avanço da civilização tecnológica, é um grande passo. Mas do ponto de vista do controle da vida das pessoas, instituições (forças armadas, por exemplo) e países, é um perigo.
Outro conceito que importa compreender é que um ecossistema de comunicações envolve várias tecnologias e diferentes sectores empresariais. Depois do estabelecimento dos padrões e técnicas, o que é feito por laboratórios e centros de investigação, entra o sector do design dos componentes, sejam eles semicondutores ou parafusos. A seguir é preciso fabricar essas peças e montá-las. Depois entram as empresas que usam todas as partes para construir os aparelhos, e as empresas que concebem o software. Finalmente, os distribuidores dessa aparelhagem pelo mundo afora.
Algumas empresas estão em várias partes do processo, como a Apple, que cria o software, desenha os aparelhos e comercializa-os – mas não congemina os semi-condutores (até agora, mas isso é outra história), nem os fabrica, nem produz os aparelhos. No caso da Huawei, a empresa concebe o software e fabrica os aparelhos, não só os dos utilizadores finais, mas também os transmissores, retransmissores, arquivos e outra parafernália que não nos interessa, mas que é essencial para que a rede funcione. Tal como todas as empresas tecnológicas, a Huawei usa uma infinidade de fornecedores, alguns fáceis de substituir, outros únicos – sobre isso, que é o cerne da questão, falaremos mais adiante.
Então o que aconteceu foi que, apesar dos esforços nacionais e empresariais noutras partes do mundo, a Huawei tomou a dianteira na criação e produção de dispositivos 5G, tornado-se de longe a empresa dominante no mercado. Nada de anormal neste mundo de gigantes multi-continentais em competição, não houvesse um problema: a Huawei é chinesa, logo tutelada (talvez “controlada” fosse uma melhor palavra) pelo Governo chinês. Aliás, por acaso, o dono da Huawei, Ren Zhengfei, começou a carreira como oficial do Exército de Libertação do Povo.
Não é preciso entrar em grandes explicações sobre o óbvio perigo da China, através da Huawei, ter acesso a todo o tipo de informação que possa existir, desde a cor do cabelo duma cidadã na Bósnia, aos códigos de lançamento dos mísseis paquistaneses. Mas essa percepção da China como um inimigo (da liberdade, igualdade e fraternidade) tem aumentado nos últimos anos, e mais ainda nos últimos meses, com a desinformação na origem do Covid-19, a mão pesada em Hong Kong, a ocupação de águas marítimas que não lhe pertencem, a iniciativa de domínio mundial da “Nova Rota da Seda” e, em geral, numa atitude agressiva em relação a todos os que não concordam com o seu “modelo capitalista de comunismo” ou com as suas atitudes no palco internacional.
Este incómodo com o quase monopólio da Huawei ganhou notoriedade com a prisão de Meng Wanzhou, no Canadá, acusada, resumidamente, de “conspirar para enganar múltiplas instituições internacionais”. Até hoje Meng, filha de Ren Zhengfei e diretora da empresa no Canadá, aguarda ser deportada para os Estados Unidos, onde pendem diversas acusações do mesmo calibre.
Também não ajuda a Huawei a atual postura da diplomacia chinesa, chamada “do Lobo Guerreiro”, de que já aqui falamos. Os chineses têm reagido à acusação de que a empresa é um braço do partido com a maior agressividade. Precisamente, a propósito do Reino Unido ter banido a Hawei de entrar na sua rede 5G, o embaixador chinês em Londres afirmou, com um tom ameaçador:“A comunidade de negócios chinesa está a observar como vocês (ingleses) andam a lidar com Huawei. Se descartarem a Huawei, é uma má mensagem que estão a enviar para outras empresas chinesas. Se querem considerar a China como um país hostil, terão de pagar as consequências. Se andam ao sabor do que querem outros países, como podem continuar a chamar-se Grã Bretanha?”.
Os ingleses, sempre foi assim, sabem ser incisivos. John Sawers, que já foi o chefe do lendário M16 (James Bond, M, lembram-se?) escreveu uma coluna de opinião no “Financial Times” que nos introduz ao verdadeiro âmago do problema. Sob um título sem nuances “O Reino Unido deve barrar a Huawei da sua rede” afirma: “Anteriormente, o facto de Huawei usar fornecedores de confiança, como a TSMC, para alguns componentes cruciais, também significava que podia garantir a sua cadeia de fornecimentos... Mas as últimas sanções dos Estados Unidos significam que fornecedores de confiança fora da China já não podem abastecer a empresa. Portanto os Serviços de Inteligência britânicos não podem dar as garantias necessárias quanto aos equipamentos.”
Agora é que entramos na verdadeira questão, guiados por esta frase de Sawers.
Primeiro, a TSMC. Trata-se da Taiwan Semiconductor Manufacturing Company, de que nunca ninguém fora do ramo ouviu falar, mas que é “apenas” o maior fornecedor mundial de microcircuitos integrados – os famosos microchips que se encontram em cada vez mais aparelhos e equipamentos,
Segundo, as “últimas sanções dos Estados Unidos”. Até maio, os norte-americanos proibiam apenas empresas americanas, como a Qualcomm ou a Google, de fazer negócios com a Huawei; a partir de agora também quaisquer empresas do mundo também são alvo de sanções se trabalharem com a Huawei, o que inclui a TSMC.
Assim muito rapidamente, vejamos qual é o problema. O primeiro circuito integrado foi construído por Jack Kilby, na Texas Instruments, em 1959. Tinha dois transístores. Mas o fabrico de transístores obedece à famosa Lei de Moore, a qual diz que o número desses componentes que integram um microchip duplica a cada dois anos. 60 anos depois, um circuito integrado já contem cinquenta mil milhões de transístores! O seu fabrico é uma mistura de gestão minimalista com produção industrial . Uma consequência disto é que uma fábrica de semicondutores custa mais caro do que uma central nuclear.
Outra, é que precisa de inovar constantemente, e fabricar em quantidades na ordem dos milhões. Ou seja, não é de um dia para o outro que alguém põe a funcionar um complexo industrial destes, enorme e com restrições de limpeza que nem existem nos laboratórios – com transístores do tamanho de três nanómetros, empilhados em camadas, qualquer micropoeira é um desastre. Isto quer dizer que o papel da TSMC, que fornece 54,5% dos transistores do mundo, é insubstituível a médio prazo e talvez impossível a longo prazo.
Ora a Huawei não produz transístores. Se não os puder comprar, não pode produzir nada.
O problema da dependência da TSMC não é só da Huawei. Os Estados Unidos, como um todo, não fabricam mais do que 13% da produção mundial. O Congresso norte-americano criou um programa de vinte mil milhões de dólares para incentivar a produção em solo nacional – uma ninharia, que servirá talvez para alguns engenheiros espertos fazerem uns modelos. As fábricas de semicondutores precisam de ser constantemente renovadas, ou seja, de um investimento constante. Por tradição, ou interesse no lucro, o grande capital, os investidores institucionais ou os que apostam nas startups, preferem investir no software, nos laboratórios e na investigação, que são mais promissores em termos de lucro a médio prazo. Investir no fabrico não lhes interessa.
Portanto, a conclusão é que uma queda da Huawei não acabaria com o 5G. Agora, um estremeção na TSMC atrasaria muita coisa, em todas as áreas do digital.
Ora, a TSMC está localizada em Taiwan. Sim, aquela ilha pequenina, que a China quer incorporar no seu território.
Por mais voltas que se dê, mais legislação que se faça (no Ocidente) o futuro do digital tem sempre o Império do Meio no horizonte.
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