Este fim de semana ocorrem os dois encontros mais importantes da vida política chinesa, conhecidos como as duas sessões. Uma reune o Congresso Nacional do Povo, a outra é a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês. Milhares de membros da elite política nacional vão “discutir” questões domésticas, como o crescimento do PNB, orçamento, defesa, o periclitante sector do investimento imobiliário, e a situação internacional, como o papel do país na mudança estratégica mundial provocada pela invasão russa da Ucrânia — ou qualquer outro tema que o Comité Central ache por bem apresentar à nomenklatura de topo.

Quanto a este último tema – a atitude da China perante o conflito na Europa –, os observadores internacionais aguardam com grande interesse o que estará nas entrelinhas do que Xi Jinping vai dizer. Já se viu que a posição chinesa é de pseudo-neutralidade, ajudando discretamente Putin sem esquecer os seus interesses próprios, ou seja, manter a Rússia ameaçadora, mas não demais, e enfraquecer o “Ocidente”. Mas não se sabe ainda como essa política se vai desenrolar na prática. 

Domesticamente, as questões não são tão controláveis, mesmo para o poder mais controlador do planeta. A combinação original de um estado totalitário com um sistema de mercado livre não é fácil de gerir e tem tido avanços e recuos. 

Não vamos agora especular sobre estas situações. Aproveitando a importância das “duas sessões”, é uma boa altura para analizar o que tem sido o comportamento das instituições e empresas estrangeiras para poder operar no campo minado dos interesses do Partido Comunista Chinês, por um lado evidentes, por outro lado imprevisíveis.

Até os governos ocidentais participam nesta cautela vergonhosa. Antes das Olimpíadas de Inverno, as autoridades chinesas avisaram que era melhor os atletas não fazerem comentários incómodos, o que levou uma das campeãs da democracia, a líder democrata da maioria do Senado norte-americano, Nancy Pelosi, a sugerir aos atletas do seu país que não fizessem nada que pudesse ofender a China.

O Governo inglês também aconselhou o empresário e activista britânico Bill Browder a não fazer comentários sobre a situação em Hong Kong. 

Em 2021, o wrestler profissional e actor John Cena, uma figura pública de relevo nos Estados Unidos, pediu desculpa, em mandarim, por ter dito que Taiwan era um país! 

Já em 2019, o clube de basquetebol Houston Rockets também pediu desculpa por ter apoiado os protestos dos activistas de Hong-Kong. Em 2013, foi noticiado que o filme de terror “Guerra Mundial Z” teve uma cena reescrita para esclarecer que um vírus criador de zombies não era originário da China.

Aliás, a indústria cinematográfica e de “entertainment” norte-americana, que durante a Guerra Fria foi grande propagandista de valores democráticos, humanistas e sanitários, agora tem sido particularmente silenciosa a falar da questão de Hong-Kong, dos campos de concentração da etnia Uyghur, ou mesmo da existência do maior produtor mundial de semi-condutores, Taiwan.

Bob Iger, o ex-CEO da Disney, terá mesmo afirmado numa entrevista: “Tentamos não fazer concessões quanto aos nossos valores; mas há compromissos necessários para as empresas que querem ser globais.”

Não surpreende que na sequela do famoso filme “Top Gun” (de 1986) o actor Tom Cruise já não aparece com um blusão com emblemas de Taiwan e do Japão. Quanto ao primeiro emblema, é óbvio; o segundo, foi apenas por precaução...

Esta auto-censura é chamada de “antecipatória” pelo grupo Human Rights Watch, e é praticamente imperceptível.

Mas não é só no “entertainment” – um mercado muito visível – que as empresas ocidentais têm mostrado um comportamento “cuidadoso” em relação às autoridades chinesas. A Google, uma empresa que se preza dos seus valores cristalinos, aceitou que as suas actividades fossem reduzidas, mas não o suficiente; acabou por ser proibida. Quanto ao Facebook, foi liminarmente proibido em 2009 – não se sabe se por não querer sujeitar-se a censura prévia, se por ser incapaz de o fazer. O mesmo aconteceu com o Twitter e o YouTube e até o inocente Zoom, que é um programa sem opinião – mas permite que as pessoas troquem as suas ideias.

O mais surreal é que a app chinesa TikTok, extremamente popular no Ocidente, é proibida na China! A versão nacional, Douyin, é igualzinha, mas não tem nenhuma ligação com a outra.

Quanto à Apple, essa campeã da privacidade, aceitou eliminar certas apps, desproteger os seus telemóveis e fazer desaparecer informação sobre certos tópicos, como referências ao Dalai Lama, para continuar a vender os seus produtos no país

Também na educação, as atitudes das universidades norte-americanas são dignas de nota. Antes da pandemia, cerca de 30% dos estudantes universitários eram chineses. Por um lado, as autoridades de Pequim vigiavam-nos e às suas famílias; por outro, as direções das escolas concordaram em excluir os estudantes chineses de certas cadeiras que levantavam problemas políticos. Se essa exclusão funcionava, é evidentemente discutível, mas o facto de serem aceites já diz muito sobre a predominância dos interesses financeiros sobre os “valores”.

Quanto às empresas que não envolvem actividade “intelectual” como, por exemplo, os fabricantes de automóveis e maquinaria, é mais fácil simplesmente não comentarem o que se passa e fazer negócio. A Volvo, a Auto Union, BMW, Rolls-Royce, Ferrari, Aston Martin e Porsche têm fábricas na China. A única condição é que são minoritárias nas empresas que fabricam os seus modelos.

Se há uma área em que não se esperam mudanças nas propostas das “duas sessões” é as relações com instituições e empresas estrangeiras. Para quê mudar? Está tudo a correr tão bem..