A histórica declaração aprovada pela Assembleia Geral da ONU faz neste domingo, 10 de dezembro, 75 anos. Esta proclamou, num texto destinado a converter-se em ideal comum para todos os povos e nações, que os Direitos Humanos são universais
Os redatores não se limitaram a definir direitos, envolveram também o compromisso global de promoção “do progresso social e de elevação do nível de vida dentro do conceito amplo de liberdade”, sem qualquer distinção de “raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de qualquer outra índole. (…)”
Analisada com olhos de hoje, vemos como essa Declaração, aprovada há 75 anos sem o voto contra de algum país, é vanguardista e mesmo utópica à luz da realidade presente. O texto da Declaração mostra terrivelmente o nosso retrocesso.
Só no ano passado, diz-nos a Amnistia Internacional, 883 pessoas que tinham sido condenadas à morte foram executadas em 20 dos países do mundo. É um aumento de 52,5% relativamente às 579 execuções registadas em 2021, e o maior aumento desde 2017, quando foram confirmadas 993.
Pelo menos trinta e três países do mundo, grande parte em África, vivem mal em fome alarmante. A FAO vê a fome a avançar e atingir em 2021 mais de 800 milhões de pessoas.
A organização Free the Slaves estima que mais de 50 milhões de pessoas estão hoje submetidas a condições de vida que devem ser consideradas como de escravatura. O departamento de Estado dos EUA denuncia que o tráfico humano envolve anualmente mais de um milhão de pessoas, sendo que 80% são mulheres e meninas.
A OMCT, organização mundial contra a tortura, documenta abusos, com casos de tortura e imposição de sofrimentos desumanos e degradantes, em mais de 60 países. Da China a El Salvador, passando por Filipinas, Myanmar, Egito, Chade, Rússia, Ucrânia e tantos países em regiões centrais da Ásia, de África, das Américas e também na Europa.
A homossexualidade continua a ser perseguida em uns 70 países do mundo e em alguns é castigada com a morte.
É incontável o número de pessoas que sofrem pelo mundo de prisão arbitrária.
A liberdade de expressão e de opinião também é um direito declarado universal. Mas a RSF contabilizou 533 jornalistas detidos no ano de 2022 por exercerem o seu ofício; 57 foram mortos e 59 foram feitos desaparecer.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948, estipula que “toda a pessoa tem direito a circular livremente e a eleger o lugar onde quer viver”. Quantos serão os migrantes barrados e tratados com crueldade? Quantos perdem a vida em cada ano na travessia do Mediterrâneo na busca da terra prometida? Quantos palestinianos foram, nestas últimas décadas, obrigados por Israel a viver em prisões a céu aberto?
E há as guerras – para além da de Gaza e a da Ucrânia, várias outras meio ignoradas.
O que está a acontecer na Terra Santa para três religiões mostra a terrível falta de uma força global que seja forte para pôr fim à barbárie. É revoltante a incapacidade das chamadas potências globais – que afinal são ou querem ser impotentes.
Dois meses depois do bárbaro ataque do Hamas que matou 1200 pessoas, o contador de mortes na ação israelita de retaliação está a subir diariamente e de forma imparável. Os mortos palestinianos são mais de 17 mil nestes dois meses, e a maior parte é constituída por civis que nada têm a ver com a agressão do Hamas e que também não têm lugar para onde escapar às bombas.
António Guterres é dos poucos que está a fazer o que pode ser feito para tratar de impor o cessar-fogo, salvar vidas, parar a chacina. O secretário-geral da ONU acaba de recorrer a uma ferramenta excecional, o artigo 99º da Carta das Nações Unidas. É um artigo que apenas foi invocado por três vezes (1960, 1979 e 1989) em toda a história da ONU, que atribui ao secretário-geral competência para "chamar a atenção do Conselho (de Segurança) para qualquer assunto que, na sua opinião, possa ameaçar a manutenção da paz e segurança no mundo". Guterres pretende levar o Conselho de Segurança à ação para parar a barbárie e a ameaça à Humanidade.
Mas Israel continua a bombardear, ataca Guterres e chega ao desplante de o acusar de “baixeza moral”: ele é a ameaça para a paz mundial (por querer parar a retaliação israelita), clama o porta-voz de Israel na ONU.
Como é que o mundo pode continuar de braços cruzados perante a sucessão de crimes de guerra?
Poucas vezes nestes 75 anos a universalidade dos Direitos Humanos terá estado tão violada e de rastos, com o poder global fraturado e estilhaçado.
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