A censura tradicional era imposta pelo Estado, ou através de organismos próprios (como foi o caso de Portugal durante o Estado Novo) ou por decisões judiciais baseadas no controle moral dos costumes. Essa censura desapareceu nas democracias ocidentais durante o século XX, no que foi considerado um aperfeiçoamento das liberdades individuais. A partir daí tudo se pode publicar, mesmo obras de discutível valor, carentes de fundamento, desonestas, imorais ou com falsas premissas. Cabe ao público comprá-las ou não, com inteira liberdade de escolha.
Este princípio é essencial. Por um lado, as ideias e costumes estão constantemente a evoluir e obras consideradas historicamente erradas ou obscenas numa época, acabam por se revelar posteriormente correctas ou aceitáveis; por outro lado, o conceito de “certo” ou “impróprio” é subjectivo e todos os conceitos têm o direito de se exprimir, mesmo que não sejam de aceitação universal. Liberdade implica que tudo seja de livre publicação, para que os cidadãos possam livremente escolher e debater.
A única restrição eticamente aceitável a esta universalidade tem a ver com a idade do leitor; debate-se, com alguma pertinência, se os jovens em formação podem ter acesso a obras que ainda não estão preparados para avaliar.
Nos tempos modernos - que podemos colocar mais ou menos a partir de meados do século passado - a liberdade de expressão provocou sempre um debate acalorado entre os reacionários - aqueles que defendem as ideias tradicionais como absolutas, e que se auto-intitulam conservadores - e os progressistas - os que acham que as tradições são sempre susceptíveis de evolução, para que não sejam um espartilho do progresso.
É mais fácil perceber esta dicotomia e antagonismo no campo das ciências exactas. Foram os progressistas que derrubaram teorias tidas como absolutas de que, por exemplo, a Terra era o centro do Universo, de que o Homo Sapiens era um ser criado e não o resultado da evolução das espécies; ou que descobriam os germes e os micróbios, a circulação sanguínea, a química moderna, e outros avanços que na altura foram considerados sacrílegos.
Nas ciências sociais, não experimentais, e nos princípios morais, é muito mais difícil chegar a um consenso. E, embora algumas delas - especificamente as diferenças raciais e de género - estejam amplamente desmistificadas, continua o debate. O pior é que os reacionários não querem que esse debate seja permitido, recusando-se a aceitar que as "suas" verdades sequer possam ser postas em questão.
E aqui chegamos a uma nova situação, em que a censura do Estado é substituída por uma censura das “bases” locais, ou seja, seitas religiosas, grupos de pais ou associações particulares, que exercem pressão para que certas obras sejam proibidas nas escolas e nas bibliotecas, vendidas nas livrarias, ou divulgadas de qualquer modo. Os alvos desta perseguição são as minorias étnicas, os comportamentos LGBTQ+, as mulheres (direito da IVG), ou a revisão da História oficial que escamoteia injustiças passadas.
Estas pessoas usam os meios legais ao seu alcance: legislação local, órgãos de educação regionais, associações de pais com direito de decidir o que os filhos lêem nas escolas. Na verdade estas decisões são inconstitucionais (caso dos Estados Unidos) ou ilegais (no Reino Unido), mas isso não impede que sejam tomadas e, na prática, levem a uma pressão insuportável sobre bibliotecários e professores.
Estes grupos representam-se apenas a si próprios e não refletem o pensamento geral dos cidadãos; no caso dos Estados Unidos, a presença nas cerimónias religiosas tem diminuído e cerca de 30% dos americanos declaram-se não religiosos. No Reino Unido, mais de 50% dos jovens também não têm religião.
Talvez seja esta perda de influência que leva os grupos religiosos, sentindo-se acossados, a ter uma postura mais ativa na defesa dos seus princípios.
Nos Estados norte-americanos em que as legislaturas são maioritariamente do Partido Republicano - os republicanos identificam-se com o radicalismo religioso - leis recentes mostram a mesma tendência de forçar os princípios cristãos no ensino. É o caso do Oklahoma, onde o governo permitiu a abertura de escolas com uma orientação religiosa ser financiada pelo Estado, numa evidente contradição com a norma constitucional que separa a Igreja do Estado.
(A lei nacional permite que o Estado financie escolas particulares - 8% no total do país -, mas não as que têm uma orientação religiosa “oficial”.)
No Texas, a legislatura estadual passou uma lei que proíbe os departamentos de DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão) e a contratação de professores segundo uma quota étnica nas universidades estabelecimentos secundários.
A lei diz especificamente que a instituição de ensino não pode “obrigar ou solicitar que qualquer estudante, funcionário ou candidato apoie uma ideologia que promova tratamento diferente a pessoas ou grupos baseada em raça, cor, ou etnicidade. Também não pode inquirir as preferências destas pessoas quanto a “anti-racismo, injustiça social, inclusão, ou conceitos relacionados.” Mais explícito, impossível. Também na Universidade de Chicago, no Michigan, e nos Estados do Missouri e Utah há tentativas de estabelecer normas semelhantes.
Bibliotecas: um campo de batalha
Outra frente que se está a tornar um campo de batalha, nos Estados Unidos, são as bibliotecas públicas. Associações informais, geralmente religiosas, têm feito pressão para que certos livros - geralmente os que revêm a História do país à luz das injustiças raciais ou que defendem as minorias sexuais - sejam retirados do catálogo. Não sendo possível imporem-se legalmente, recorrem à pressão sobre os bibliotecários.
No Reino Unido, estas chamadas “guerras culturais” não têm tido grande atividade nas escolas - o sistema inglês é basicamente agnóstico, baseado na permissividade relativa da Igreja oficial Anglicana - mas manifestam-se nas bibliotecas públicas e comunitárias. Segundo a Cilip, a organização nacional de bibliotecários, citada pelo “The Guardian” , um terço dos bibliotecários do Reino Unido tem recebido pressões e até ameaças para retirar livros do seu espólio - especificamente obras que questionam o imperialismo inglês, problemas raciais e posturas LBGTQ+.
Esta actividade censória tem tido efeitos perniciosos nos editores de livros. As grandes editoras, que, tal como as grandes empresas de qualquer ramo, têm como principal objectivo as vendas e não uma militância ou valor moral do que quer que seja, têm tomado a iniciativa de purgar os livros, muitos deles clássicos, de palavras ou expressões que possam ser consideradas provocatórias.
Alguns casos ridículos - se não fossem trágicos - já entraram no anedotário, como por exemplo a remoção de “oriental” num personagem de Agatha Christie, na série Poirot, ou referências étnicas nos livros de Ian Fleming da série James Bond. No famoso livro juvenil de Roald Dahl, “Willie Wonka e a fábrica de chocolate” (que vendeu milhões e teve duas adaptações cinematográficas), os wompa-wompa, nativos duma ilha nos mares do sul e supostamente “escuros”, nas novas edições são cor de rosa!
O reescrever livros do passado, adaptando-os ao “politicamente correto” do presente, ou de acordo como os preconceitos atuais - tanto da direita religiosa, como da esquerda “woke” - é um crime cultural indefensável. No mínimo, leva a situações tristes, como a editora que publicou a enésima edição das obras de Kierkegaard com uma nota introdutória a dizer que o pensamento do autor não reflete a política da casa...
Pior, ou tão mau, é a censura a autores contemporâneos, que simplesmente não são publicados, nem com notas introdutórias. Aqui em Portugal ficou famoso o caso de Afonso Reis Cabral, que foi recusado por uma editora americana. O mail de recusa diz tudo em poucas linhas:
“Afonso Reis Cabral tem claramente muito talento, contudo acho que a franqueza de “O Meu irmão” pode ser problemática no mercado dos EUA, onde estes assuntos são levados muito a sério pela comunicação social. A apreciação de “Pão de Açúcar” foi bastante boa, mas um colega achou preocupante que uma pessoa cis escreva sobre uma pessoa trans - outro tema muito sensível neste país. Procurei por uma pessoa LGBTQ que falasse português para fazer um relatório de sensibilidade, mas não encontrámos ninguém. Então, por estas razões, decidimos não publicar.”
Ou seja, entre os fundamentalistas religiosos e os radicais culturais, a literatura - e portanto a memória, a cultura e a liberdade de expressão - estão a passar por um período difícil. Isto, para não falar daqueles países - os culpados do costume - onde a censura de Estado é um facto consumado.
Felizmente que a maioria das democracias europeias (continentais, para excluir os brexits) não parecem muito inclinadas a seguir esta decadência civilizacional. Enquanto há literatura, há pensamento, sonho e esperança.
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