1. No instante em que começo esta crónica, a barragem de Barão de Cocais ainda não rebentou. Quando eu acabar de a escrever, a parede da barragem terá avançado um pouco mais. De anteontem para ontem, avançou 11 centímetros. A pergunta que as pessoas fazem já não é se vai rebentar, mas quando vai rebentar. Quando vai vir aquela gigantesca onda de lama que em Mariana e Brumadinho já matou centenas de pessoas, milhares de animais, milhões de peixes, todo um rio, que era a vida de populações inteiras, o Rio Doce.
Isto é Minas Gerais em 2019. Esse estado do Brasil tão verde, montanhoso, interior, que tem a má sorte de brilhar também por dentro. Pedras e metais fabulosos, uma riqueza imensa de que o Portugal imperial, colonizador viveu, e agora é esventrada de forma totalmente selvagem pela gigante Vale.
Aconteceu algo aos responsáveis da Vale depois da mortandade de Mariana e Brumadinho? Algo mudou nesta insanidade gananciosa? De facto, não. A barragem de Barão de Cocais pode rebentar a qualquer momento, e como ela várias outras. O lucro é tanto, a máquina tão portentosa, que as despesas de lidar com indemnizações, realojamentos, abastecimentos, etc, são trocos. Com o aval de todos os que estão sentados no poder.
O crime de estado no Brasil é tal que populações inteiras serem varridas, pedaços inteiros de natureza serem mortos se tornou corriqueiro. Pequenos efeitos colaterais. Um precinho a pagar.
E acabo de ler que a própria capital do estado já está no radar da lama, pelos riscos de rompimento noutra barragem, Forquilha I, em Ouro Preto. Mesmo a cem quilómetros de distância, Belo Horizonte (de onde envio esta crónica) pode ser atingida pela lama em 11 horas.
Segundo admissão da própria Vale, neste momento há nada menos que oito barragens em “risco severo” de romper. Difícil acreditar que isto seja possível, que o Brasil tenha chegado a semelhante ponto de bandidagem governo-empresarial. A grande facção criminosa do Brasil é esta.
E sabe-se que as consequências da lama serão muito mais graves do que as estimadas nos relatórios da Vale. Porque a Vale estima o impacto de uma vaga líquida. Quando a onda de lama será densa, com muitos detritos e objectos, pedaços de casas, árvores, carros, camiões. Uma onda pesadíssima, com um potencial de destruição muito maior do que apenas água.
2. No fim de semana, viajei de Belo Horizonte até à Aldeia Krenak, terra indígena demarcada. É uma longa, morosa viagem. Primeiro, sete horas de autocarro numa estrada tão perigosa que ganhou o nome de rodovia da morte, a BR-381. Partes em obras, má sinalização, muitas curvas, muitos camiões pesados. Chegando enfim a Governador Valadares, cidade desolada e desoladora, nascida do caminho de ferro, da exploração mineira. Nos últimos dez anos, viajei muitas vezes por Minas, para sul, para oeste, para norte. Minas, a dos caminhos de terra vermelha, a das serras verdes, é linda. Mas nunca tinha vindo de Belo Horizonte para leste. Para este mundo escavado e escravizado pela Vale, até ao tutano. E onde escrevo Vale leia-se teia político-empresarial. Porque se a Vale pode o que pode é por ter licença para isso. É por isso ser parte do desprojecto de Brasil em curso. E o brilho do Rio Doce, que banha Valadares, é agora um chamado da morte. Veneno. A Valadares, lugar quentíssimo, já nem o rio acode. A mesma exploração que deu origem à cidade acabou com o seu único frescor, sua única beleza.
A partir de Valadares é hora e meia de carro até à Aldeia Krenak, parte em estrada de terra. E foi aí que literalmente pisei a morte do Rio Doce, metendo o pé nas suas areias, saltando entre as suas poças, para evitar a água contaminada.
Ailton Krenak, um dos grandes líderes indígenas do Brasil, liderou o caminho, ele mesmo sem certeza de onde pisar. Mesmo as areias da beira do rio, mesmo as lages, talvez não sejam muito saudáveis. Mas estavam quentes ao poente e aí nos sentámos. Aqui chegou a enxurrada de lama de Mariana, depois de viajar rapidamente 400 quilómetros, trazendo muito do que já arrastara. As pessoas da aldeia não sabiam de nada, não lhes chegara nenhum alerta da Vale. Quando acordaram, o rio ali aos pés de casa era uma lama coberta de peixe morto. Os primeiros animais que ainda beberam naquela água morreram. Cachorros que tiveram a péssima ideia de ir lá meter o focinho saíram com ele necrosado, e as patas como garras, tudo inchado. Estava morto o rio de todos, alimento de corpo e espírito, talvez por décadas. O rio a que os Krenak chamam Watu.
No Watu, eram imersos os bebés com um mês, para purificar. No Watu se lavava a roupa, se banhavam as pessoas, se tirava a água de beber, bebiam os animais. No Watu se pescava. Tudo isso acabou.
Agora, a Vale traz camiões-cisternas, com água potável e não-potável, para todas as necessidades, porque é a única solução. A população indígena, que tinha um rio, agora depende dos camiões da Vale, e bebe aquela água cheia de cloro. Para a Vale, trocos. À Vale tanto faz que o rio esteja morto, ele continua a alimentar a máquina, o sugadouro.
Ao poente, visto daquelas lages quentes, o Watu ainda é lindo. Mas os Krenak, como muitos milhares, milhões, não podem nem entrar nele. Uma ilusão de beleza, com morte por baixo. O crime continuado do Brasil.
3. Da Aldeia, regressei de comboio, o famoso trem de ferro, na linha feita para escoar incontáveis vagões de minério. E foram incontáveis vagos de minério que vi passar pela janela, em sentido contrário. E incontáveis pilhas de toros, incontáveis árvores cortadas. A mais lenta, penosa viagem de comboio que já fiz na vida (e fiz muitas, e longas). Ao fim de não sei quantas horas anoiteceu, e as pessoas começaram a contar os minutos para passar o viaduto antes da estação de Barão de Cocais. Porque se a onda de lama viesse naquele momento, ia o viaduto e o comboio. Desde dia 16, por causa da ameaça de rompimento da barragem, o comboio interrompe-se nesta estação, e é despejado para ônibus que depois levam as pessoas até ao destino final, Belo Horizonte. Já noite escura passámos o viaduto, e o comboio parou, com alívio. Mais de 600 pessoas com medo e exaustas. Seguiu-se a longa, penosa transferência, carruagem a carruagem das pessoas para os ônibus. Descarregava uma carruagem e lá se iam umas dezenas de noite. Depois mais uma carruagem, e mais umas dezenas. Cenário de catástrofe. Só que prevista. Só que sabida. Só que causada. Só que licenciada pelos governantes.
Os ônibus fizeram-se então à rodovia da morte. O meu perdeu-se a certa altura e ficou atolado num estaleiro de terra e obras. Havia quem rezasse a bordo. Eram 10 da noite quando chegámos à estação de Belo Horizonte. Exactamente 12 horas depois de eu sair da Aldeia Krenak.
Antes de terminar esta crónica fui ver como estava o avanço da barragem em Cocais. As últimas notícias dizem que o avanço por dia está em 12,5 centímetros, 16 nos pontos mais críticos. E que o rompimento está previsto para este fim de semana.
Pensamentos ao alto para todos os seres vivos em redor.
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