1. Origem
Somos primos da mais recôndita das bactérias escondida na Fossa das Marianas, a mais de 11 km de profundidade. Primos afastados, é certo. Mas primos! Todas as bactérias e todas as células de todas plantas e de todos os animais, incluindo as células que qualquer um de nós tem no corpo, têm origem numa mesma célula que terá vivido há aproximadamente 4000 milhões de anos.
Essa célula inicial − que certamente não surgiu do nada − dividiu-se em duas, que por sua vez também se dividiram. Anos depois, surgimos nós (sim, pelo meio as células juntaram-se em organismos, colecções de células que colaboram umas com as outras − mas cada uma delas continua a surgir por divisão de uma célula anterior).
Se virmos bem, essa primeira célula nunca morreu: dividiu-se e continua viva, embora multiplicada pelo mundo inteiro, dando origem à tremenda riqueza biológica do planeta. Uma bendita infecção planetária.
2. Alfabeto
Como sabemos que todas as células têm a mesma origem? Porque todas partilham o mesmo mecanismo, que existe em todos os seres vivos, desde a mais escondida das bactérias aos elefantes, passando pelos seres humanos (e pelas bactérias que estão dentro dos elefantes e dos seres humanos).
Refiro-me ao ácido desoxirribonucleico (ADN), um ácido que está dentro de cada uma das nossas células e inclui uma série de instruções para o funcionamento da célula e para a sua divisão. Estas instruções estão escritas numa espécie de alfabeto composto por quatro unidades diferentes: a adenina (A), a citosina (C), a guanina (G) e a timina (T). As bases compõem duas longas hélices unidas.
Este mecanismo podia ser muito diferente entre as bactérias e os seres humanos. Podia até ser subtilmente diferente: por exemplo, as unidades podiam ser outras, compostas por outros átomos. O sistema da evolução por selecção natural iria funcionar de qualquer forma. Aliás, podíamos ter muitos seres vivos com um sistema e outros com outro sistema, todos eles vivos. Mas a verdade é que todos os seres vivos da Terra usam este sistema em particular.
Todos os seres vivos usam o mesmo alfabeto da vida: quatro unidades dispostas da mesma forma. O texto composto por este alfabeto é que vai variando de espécie para espécie e, subtilmente, de indivíduo para indivíduo. Além do ADN, há outro ácido importante, o ácido ribonucleico (ARN), que serve para traduzir as instruções do ADN e criar proteínas. O processo é complexíssimo e está constantemente a ocorrer em cada uma das nossas células − e nas células das alfaces.
Conhecemos este mecanismo há pouco tempo. Só nos anos 50 do século xx, James Watson e Francis Crick descobriram a estrutura e a função do ácido que está no âmago de todas as células. As próprias células são conhecidas há relativamente pouco tempo. Foram descobertas por Robert Hooke, em 1665.
(Nota: O artigo “Discovery of DNA structure and function: Watson and Crick”, de Leslie A. Pray, descreve a sucessão de descobertas necessárias para se saber qual é a estrutura e a função do ADN.)
3. Evolução
Há vários tipos de células, mas todas são pequenas fábricas biológicas, com pelo menos um núcleo e uma membrana exterior, constantemente a trabalhar, recebendo e utilizando energia proveniente de nutrientes, protegendo e reparando o ADN no seu núcleo, preparando-se para a sua própria divisão e multiplicação.
Como se explica a variedade de células e organismos compostos por células que vemos à nossa volta? Explica-se pela evolução por selecção natural, um mecanismo que foi descrito de forma bastante precisa por Charles Darwin e Alfred Russel Wallace, na segunda metade do século xix. Poucas descobertas científicas provocaram uma tão grande comoção como a evolução por selecção natural.
A ideia de que os seres humanos descendem de outros animais foi ridicularizada e, em geral, simplificada na forma «os seres humanos descendem dos macacos». Não é bem assim: os macacos, os seres humanos e outros símios têm um antepassado comum relativamente recente; na verdade, se andarmos suficientemente para trás no tempo, até os piolhos têm um antepassado comum com o ser humano.
A ideia pareceu estapafúrdia aos oitocentistas. Diga-se, no entanto, que não foi Darwin o único a descrever a teoria. Ao mesmo tempo, Alfred Russel Wallace chegou às mesmas conclusões. Esta descoberta praticamente simultânea não é caso único na história da ciência. Há muitos casos em que os conhecimentos obtidos até então eram como que uma escada à espera de quem subisse o último degrau − e havia, por vezes, duas pessoas prontas a chegar ao topo.
A teoria encaixava tão bem com as observações e a argumentação a seu favor era tão sólida que os biólogos aceitaram a evolução com incrível rapidez, tornando-se um dos pilares fundamentais da Biologia. A teoria foi sendo refinada ao longo do tempo, sendo hoje uma teoria bastante mais completa do que no final do século xix (conhecemos hoje o ADN, elemento essencial para compreender como a evolução ocorre na prática).
4. Selecção
Há conceitos científicos que não são entendidos por todos exactamente da forma como os cientistas esperam. Por outras palavras, há expressões que andam nas bocas do mundo, de tal maneira que todos parecem compreendê-las − sem as compreender na realidade. Uma dessas expressões é «evolução das espécies». Em muitos casos, a ideia que corre é a de que o mecanismo descrito por Darwin e por Wallace é apenas uma descrição de algo banal: as espécies mudam ao longo do tempo.
O que Darwin e Wallace descreveram foi a evolução por selecção natural, que é muito mais do que o simples reconhecimento de que as espécies mudam (isso já se sabia). É a descrição do próprio mecanismo que leva à criação de novas espécies. Ou seja, a partir do momento em que temos vida (e a Teoria da Evolução não explica − nem pretende fazê-lo − como surgiu a vida), a evolução por selecção natural garante que a vida se vai espalhando em várias espécies, levando à tremenda diversidade que vemos à nossa volta, desde bactérias de todos os tipos, plantas, animais, horrores e maravilhas sem fim.
Este é o mecanismo que nos criou a partir de velhas e simples bactérias (enfim, não tão simples assim, mas bem mais simples que um ser humano).
5. Polegares
Até Darwin aparecer, havia na Europa duas ideias principais sobre a origem da diversidade da Natureza. A primeira era a tradicional ideia da criação divina. Ou seja, o Universo teria sido criado em seis dias, por Deus, há aproximadamente 6000 anos. Esta é uma de muitas histórias da criação que existem pelo mundo. Sabemos que, em certos meios, esta ideia ainda é tida como verdadeira − no entanto, já não é defendida, por exemplo, pela Igreja Católica, que aceita a evolução natural como mecanismo de criação das espécies e vê o Génesis como uma descrição espiritual e não factual.
Outra ideia para explicar a diversidade da natureza anterior a Darwin era a da simples evolução: por algum mecanismo não muito bem compreendido, as espécies aprendiam como melhorar ao longo do tempo. É a evolução lamarckiana, defendida por Jean-Baptiste Lamarck, que implica a passagem de características adquiridas ao longo da vida aos descendentes. Segundo esta ideia genérica, que algumas pessoas ainda defendem, o uso cada vez mais frequente dos telemóveis levará, com o tempo, ao crescimento dos polegares dos seres humanos.
Os desenvolvimentos recentes no estudo da epigenética, que indicam haver consequências nas gerações futuras de comportamentos ao longo da vida, são entendidos por alguns como um regresso ao lamarckismo. No entanto, mesmo que os comportamentos dos pais tenham consequências genéticas nos filhos ou mesmo nos netos, estas consequências parecem desaparecer ao fim de poucas gerações, não consistindo, tanto quanto se sabe, um motor da evolução das espécies. (Jerry Coyne, um biólogo norte-americano, descreve o engano neste pequeno artigo no seu website: “Epigenetics: the return of Lamarck? Not so fast!”.)
O lamarckismo que está na cabeça de muitas pessoas não é o que hoje se sabe sobre a evolução das espécies. Levada ao limite, a ideia implicaria que, numa família em que o pai e a mãe têm ambos um acidente e ficam sem o braço direito, os filhos nascerão também sem o braço…
O mecanismo da evolução por selecção natural é outra coisa. É um mecanismo elegante, mas com implicações complexas, e difícil de explicar em pouco tempo. Mesmo assim, tentarei descrevê-lo de forma rápida.
6 e 7. Rapidinhas e Vagarinhas
Imaginemos uma célula primordial, muito simples, que consegue reproduzir-se de dois em dois dias. Começamos com uma célula normal. Dois dias depois, temos duas. Quatro dias depois, temos quatro. Seis dias depois, temos oito.
Imagine-se agora que uma destas células sofre uma mutação aleatória (a cópia da informação necessária para a reprodução não é perfeita) e começa a reproduzir-se mais depressa: uma vez por dia. Começamos com essa célula. Dois dias depois, já temos quatro iguais. Quatro dias depois, temos 16. Seis dias depois, temos 64. As novas células − chamemos-lhes rapidinhas − invadem rapidamente o espaço das outras, que, ao fim de seis dias, são apenas oito.
Se a mutação fosse negativa (e é-o, muitas vezes), as novas células − chamemos-lhes vagarinhas − poderiam reproduzir-se, mas rapidamente desapareceriam no mar de células normais e, caso existissem, rapidinhas…
Ao fim de 10 dias, temos 1024 células rapidinhas, 32 células normais e umas infelizes 4 células vagarinhas, perdidas no mar de rapidinhas. As células rapidinhas foram naturalmente seleccionadas e passam a ser as células normais. Com o tempo, também sofrerão mutações no momento da divisão. Algumas mutações desaparecem, ao prejudicar a velocidade de divisão. Mas basta uma mutação, de vez em quando, melhorar essa velocidade, para termos rapidamente essa rapidinha 2.0 a tomar o lugar das anteriores.
8. Matemática
Se tivermos um qualquer organismo que se reproduza, e se essa reprodução estiver sujeita a pequenas imperfeições pontuais (mas inevitáveis e regulares), o mecanismo de selecção natural implica, logicamente, que as imperfeições da cópia que sejam benéficas se espalhem rapidamente. A própria lógica da matemática obriga-nos a concluir isto mesmo.
Note-se que me concentrei, para explicar o processo, na velocidade de divisão. No entanto, a mesma lógica pode ser aplicada a qualquer característica da célula: imaginemos que uma pequena mutação permite à célula proteger-se melhor da chuva, que até então matava uma grande parte das células. Essa célula irá sobreviver um pouco melhor, reproduzir-se mais. Com o tempo, este efeito multiplica-se e as células com a nova mutação tornam-se dominantes. Imaginemos ainda que outra mutação permite à célula encontrar mais facilmente nutrientes necessários: mais uma vez, essa nova versão da célula rapidamente se tornará dominante. Em breve, teremos células que não só se reproduzem depressa, como se protegem da chuva e encontram nutrientes com facilidade.
9. Mutações
A Teoria da Evolução não explica o início da vida − mas não me custa acreditar que esse início terá sido uma molécula de ácido que, de alguma maneira, ganhou a capacidade de se reproduzir de forma imperfeita. Com o tempo, essa molécula foi ganhando características cada vez mais complexas, protegendo-se com uma membrana e criando um sistema que permitisse uma reprodução mais rápida e segura. Chegámos à primeira célula. Esta célula foi já o resultado de uma adaptação gradual, um acumular de pequenas mudanças, ao longo de muito − mesmo muito − tempo. Depois do surgimento das células − e se deixarmos passar bastante tempo − encontramos células unidas em pequenos conjuntos chamados organismos, que também evoluem.
Como os ambientes em que os organismos viviam eram diferentes, levando a que mutações benéficas para organismos num contexto fossem prejudiciais noutros, apareceram as diferentes espécies, que se foram diversificando ao longo dos últimos 4000 milhões de anos.
Hoje sabemos que as mutações ocorrem no ADN, o ácido que está no núcleo das células − e que poderá ser descendente da primeira molécula reprodutora. Tudo o que veio a seguir terá sido consequência de formas cada vez mais elaboradas de essas moléculas reprodutoras se protegerem e reproduzirem mais depressa. (Também há a hipótese de a molécula que esteve na origem de toda a vida ter sido uma molécula de ARN, que depois se serviu do ADN como forma de guardar mais eficazmente a informação genética.)
O ADN inclui uma quantidade astronómica de informação, acumulada pelo processo que descrevi, ao longo de 4000 milhões de anos. De cada vez que é copiada, a molécula de ADN sofre pequenas mutações aleatórias e essas mutações estão na base da evolução.
10. Imperfeição
Em suma: a partir de uma primeira molécula que se copiou a si própria, há uma explosão em diversas espécies, através de um mecanismo que começa nas inevitáveis imperfeições das cópias, imperfeições essas que desaparecem se forem prejudiciais, mas são naturalmente seleccionadas se permitirem um maior número de cópias. Este é um mecanismo que não necessita de nenhum plano inicial, mas implica uma selecção muito pouco aleatória. As imperfeições são aleatórias, mas a selecção não é: sobrevivem as alterações que permitam, de alguma maneira, melhorar a transmissão da informação que está no ADN.
Sublinho a palavra «imperfeição»: já para a criação das estrelas e galáxias precisámos de pequenas rugas no Universo primordial; para a evolução das espécies também precisamos de cópias imperfeitas. Um Universo perfeito seria perfeitamente igual em todo o lado e, logo, estéril. Se a primeira célula se tivesse reproduzido perfeitamente, sem falhas, sem pequenas mudanças, hoje teríamos um mundo aborrecido, preenchido uniformemente por esse organismo.
Voltando ao meu tema predilecto: a imperfeição é essencial também para as línguas. Se as primeiras palavras se tivessem mantido inalteradas, falaríamos todos a mesma língua, é certo, mas as palavras não seriam muitas e as nossas conversas seriam muito repetitivas.
Capítulo do livro História do Português desde o Big Bang.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.
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