Aprender. Nascemos sem palavras, num choro que se mistura com a dor, o amor e os nervos dos pais. Palavras? Nenhumas. Devagar, aprendemo-las e, com elas, o peculiar mecanismo a que chamamos língua portuguesa.

Beleza. Depois, quando crescemos, usamos esse mecanismo para comprar e vender, namorar e discutir, aprender e ensinar — e também para insultar e conspirar. Mas é também material da literatura, da música, de discursos de coração a bater, de frases sussurradas e que nunca esquecemos. A língua — e em especial a língua a que chamamos nossa — é uma das maneiras que temos de criar coisas belas neste mundo. Não é coisa pouca!

Camões. É a língua de Camões, não porque tenha sido inventada pelo poeta, mas porque era a língua que ele falava… Mas também é a língua do Martim Codax, do Gil Vicente, do Bernardim Ribeiro, do Manuel, da Maria, da Sara — e de todos os que a falam por esse mundo fora.

Descoberta. Diz-se e escreve-se muita coisa que não vale a pena. Mas, no meio de todos os livros que temos na nossa própria língua, há tanto a descobrir. Para começar, o próprio do Camões, que para lá de servir para chatear e para nomear de cada vez que falamos da língua, também serve para ler. E não é só Camões, claro — deixo apenas três sugestões, mais do que batidas, mas novíssimas de cada vez que alguém abre um destes livros: A Queda dum Anjo, de Camilo; A Relíquia, de Eça; Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Ah, e já agora, delicie-se com um livro bem mais recente, descoberto ontem mesmo por milhares de espanhóis, nas páginas do El País: A Sala Magenta, de Mário de Carvalho.

Escrita. Dos milhares de línguas da Terra, só uma minoria tem uma forma escrita. Temos essa sorte. Ainda por cima, ao contrário do que acontecia há 200 anos, uma grande maioria da população sabe escrever — e, hoje, escreve mesmo o dia inteiro. Daí, surgem dúvidas, hesitações e erros — e surge ainda o maior erro de todos: a convicção de que há quem nunca erre. Todos erram — uns mais do que outros, é bem verdade.

Filhos. E quem mais erra — e ainda bem! — são as crianças, ao começar a dominar esta língua, devagar, esforçando-se por aprender as regras, as excepções, os tabus, os truques e as delícias. É pela tentativa e erro que vamos lá — a língua é mesmo assim, qualquer coisa de muito humana, construída no dia-a-dia na cabeça e na boca de cada um de nós.

Galego. Esquecemo-nos de onde veio a língua — sim, veio do latim (que também já tinha vindo de outras línguas mais antigas, numa sucessão que segue por muitos milhares de anos enterrados no passado). Mas esse latim começou a ser cozido nas bocas dos falantes lá para cima, no nosso Norte, mas também na Galiza, onde ainda hoje se fala qualquer coisa de muito parecida com o português. É uma das surpresas guardadas no sótão da língua.

História. Uma língua que já existia quando Afonso Henriques se tornou rei — mas que não tinha o nome que tem hoje. Uma língua que veio lá das serranias do Noroeste da Península e desceu até ao Algarve, fazendo-se depois ao mar. Não é uma epopeia, é uma história feita de tanta gente que não cabe em poucas linhas — ou em muitas linhas. Fico-me, apenas, por estas letras, de A a Z, em homenagem a essa História.

Indignação. O português é também a tentativa — desesperada, inevitável — de o aprisionar nas páginas de dicionários e gramáticas. Não são esses livros que criam a língua, mas tiram-lhe o retrato. Depois, há quem se indigne quando a língua não se comporta sempre como aparece no retrato. Acontece isso com o português e com todas as línguas aqui à volta. Faz parte.

Jogo. A língua também é brincadeira. Às vezes, é até uma forma de passar o tempo, em conversas aos círculos, palavras que não acrescentam, mas que nos ligam uns aos outros nos momentos em que estamos juntos. E é também um jogo no recreio da escola, nas mensagens dos ecrãs, nas canções de embalar, nas anedotas ao jantar, nas frases dos namorados…

Letras. A língua começa nos sons e não nas letras — e, no entanto, são as letras que nos dão o aspecto da língua. As letras e tudo o que as acompanha — por exemplo, no português, temos a nossa conhecida cedilha e o til, criando, só como exemplo, esse conjunto — «-ção» — que nunca inicia uma palavra, mas permite reconhecer de imediato um texto como português.

Medo. Há quem tenha medo de escrever, não vá dar-se o caso de cair no temido erro. Pois bem: é certo e sabido que, sim, vai mesmo cair no erro. Não deixe de o combater, mas descontraia: a língua é demasiado importante e saborosa para se deixar de usar por receio dum qualquer tropeção. Fale (sem pudor). Leia (bons livros). Escreva (por prazer). 

Nascimento. Uma língua como a nossa há-de ter nascido num certo momento da História, não é? E, no entanto, nunca nasceu — foi-se criando, devagar, na rua, a partir do que vinha antes e sempre a caminho do que vem depois. Parece uma banalidade, mas não é bem: o português — como todas as línguas — nunca chegou a um estado completo, final. Está sempre a transformar-se, devagar, noutra língua, ligeiramente diferente. Um processo inevitável — mas, valha-nos isso, muito lento… É por essa razão que ainda hoje conseguimos ler poemas que falam de ondas do mar de Vigo e é por isso que, daqui a alguns séculos, ainda há-de haver quem leia um ou outro livro que alguém está a escrever neste preciso momento.

Ondas. Desde o mar de Vigo ao mostrengo que está no fim do mar, a nossa língua tem qualquer coisa de onda e de água, de espuma e de areia. É só impressão minha, certamente, inscrita na minha cabeça por tudo o que já li na minha língua.

Palavrões. Aqui, nesta letra, podia ter deixado Pessoa, com essa frase escrita por uma das suas criações, transformada num dos mais enjoativos chavões da língua («Minha pátria é blá, blá, blá»). O arquipélago de poetas não merece tal sorte. Também podia ter escolhido a pureza, objectivo raras vezes confessado de quem gosta de limpar a língua, a mais desarrumada das criações humanas. Fico-me pelos palavrões — essa prova bruta da força das palavras, da maneira como a língua serve para levar a nossa imaginação, mesmo a menos recomendável, ao corpo e à mente das outras pessoas.

Queria — ou quer? A língua também são os seus mitos, as irritações, as ideias-feitas, as pequenas graçolas. Há quem não goste do simpático «queria» e prefira o «quero». Há quem insista em pedir um «copo com água», para se proteger do perigo de receber um copo feito de água. Há quem ande sempre à caça da falta de lógica da língua. Ora, como a língua não foi feita com um esquadro nem planeada por ninguém, o material à disposição desses caçadores é praticamente infinito…

Redundância. E o que gostam eles (os tais caçadores de imperfeições da língua) de procurar redundâncias! É um desporto divertido, mas um pouco absurdo: afinal, a redundância é essencial a todas as línguas humanas, como é apanágio de um sistema natural. Não fosse a redundância e a língua exigiria sempre silêncio absoluto, atenção sem falhas, falantes perfeitinhos. Não somos robots e dizemos muita coisa em modo de repetição. É mesmo assim…

Saudade. É comum dizer que a saudade é só portuguesa e não se traduz! E, no entanto, traduz-se. A língua é qualquer coisa de muito particular, mas é também universal: não há nenhum grupo de humanos sem língua e, até hoje, não se encontrou uma frase que fosse impossível de traduzir. Até as frases que levam dentro essa portuguesíssima «saudade».

Tradução. Pois é: as línguas são barreiras, mas temos esse bilhete de passagem que é a tradução — ou a aprendizagem de outras línguas. E, no entanto, dentro de cada língua, estão outras barreiras bem mais profundas e difíceis de ultrapassar: às vezes, é mais fácil pôr a conversar um português com um japonês do que um benfiquista com um sportinguista…

Universal. A língua — a nossa língua — separa-nos dos outros povos, é verdade. Há quem veja nisto uma tragédia humana, uma maldição antiga. E, no entanto, imagine-se um mundo em que todos aprendessem, numa geração, a mesma língua. Garanto: poucas gerações depois, as diferenças voltariam a aparecer. Novas línguas surgiriam… Mais vale aproveitar o melhor possível a nossa língua e olhar com curiosidade para as outras línguas todas.

Variação. A língua nunca é pura, varia sempre, de situação para situação (digo «a gente vai» a um amigo, mas não diria numa entrevista»), de pessoa para pessoa (a língua que aprendemos nunca é exactamente igual à língua do vizinho), de terra para terra, de ano para ano… Há quem desespere com esta língua sempre a mudar — mas sempre assim foi e sempre assim será.

X. A mais complicada das letras, com não sei quantos sons — mas também um símbolo do 10, do voto, de um tesouro… A língua esconde sempre mais qualquer coisa — mesmo dentro de uma só letra.

Zebra. A última letra é sempre a mais complicada. Acabamos em «zebra», uma palavra portuguesa que foi exportada para o inglês. Não é a única! E com este animal às riscas, como se fosse uma passadeira que ganhou pernas, termino esta pequeníssima brincadeira em 23 letras, uma homenagem a esta língua em que trabalhamos, namoramos, brincamos, cantamos — vivemos, pois então.


Marco Neves | Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras. O seu livro mais recente é Gramática para Todos — O Português na Ponta da Língua.