A experiência mais cruel diz-nos que ninguém ensina nada a ninguém sobre a morte de um filho. Soube-o por experiência própria; percebi-o quando alguém me disse, porque o vivera também, que esse drama maior “é tudo e o seu contrário”: é o desejo de estar sozinha e o horror a estar sozinha; é a vontade de esquecer o que se passou e a necessidade imensa de falar no que se passou; é querer ouvir uma palavra que nos resgate e, ao mesmo tempo, não querer que ninguém nos diga nada. É por isso que a pergunta “o que se diz a uma mãe / pai que perdeu um filho?” fica sem resposta. Ou tem todas as respostas possíveis, porque o todo e o nada podem ser faces da mesma moeda. Talvez por isso tenha fixado tanto o diálogo que tive com uma voluntária pouco tempo depois de o meu filho morrer: “o que gostava que eu lhe dissesse? Não sei...”

Não sou crente; não acredito na ideia – talvez injusta – de que há um deus por detrás do que nos acontece – como não acredito que haja algo mais para além desta vida. Foi por isso que, num certo sentido, a morte de o meu filho F., aos 11 anos, foi uma espécie de fim. Existe nas minhas memórias, nas minhas saudades, no futuro que lhe adivinhei mas que não se cumpriu. Existe no meu amor de mãe cuja vida foi violentamente interrompida pela morte de um filho com um cancro, que era, para mim, doença de adultos. Se eu fosse crente o desgosto era menor? A ideia da vida eterna conforta uma mãe que chora todos os dias, que vive com memórias nítidas e sofridas de cheiros, sons de máquinas, vozes humanas e cores assépticas? O que faz a fé por nós, mães destroçadas, pais destroçados, irmãos destroçados?

O meu filho F. morreu há quase dois anos. Durante os quase quatro que lutou contra a doença foi o centro, ainda mais centro, do nosso mundo. Todos perdemos os nossos nomes: eu era “a mãe do F.”, o meu marido era “o pai do F.” Era assim que éramos conhecidos, era assim que fazia sentido. Porém, na violência do cancro que tudo arrasta, os meus dois outros filhos eram “os irmãos do F.”; não tinham identidade própria, a não ser por via da identidade do irmão. Olhar para trás pode ser um lamento, apenas. Resta-me explicar-lhes isso, dizer-lhes, na altura certa, que os pais não nascem preparados para isto; os pais improvisam, tantas vezes, e tropeçam mais vezes ainda.

No curriculum da vida tenho uma linha que não prescreve: sou mãe de um filho que morreu aos 11 anos. Não tenho curso sobre o tema, tenho experiência no tema. Saberei eu ensinar alguma coisa? Conseguirei eu abordar uma mãe em condições semelhantes e explicar-lhe o que quer que seja? Talvez o destino da minha experiência não seja uma mãe ou um pai nestas condições, mas quem vive em seu redor. Confortar alguém nas nossas condições é um exercício de tentativa e erro. É tentar de novo, falhar novamente, falhar melhor, como dizia o escritor: é perceber o desejo de silêncio e o desejo de conversa; é perceber a necessidade do esquecimento e a obsessão da lembrança; é perceber tudo e o seu contrário. E perceber o choro que não acaba, os olhos perdidos e vagos, a total ignorância do que fazer e quando fazer. Como se conforta uma mãe que perdeu um filho? Não sei, porque nem para mim soube o que queria.

Para os crentes, o fim na terra representa o princípio no céu. Para mim, mãe descrente que perdeu um filho de 11 anos, o desafio é igual: tapar o buraco que se abriu dentro de mim, não com a ajuda da fé, que não tenho, mas com a ajuda de uma vontade imensa de encontrar um sentido para o desgosto. Acima de tudo, não deixar que seja esse buraco o que me constitui como ser humano, como se fosse uma linha que me destaca numa rede social ou num curriculum para um emprego. Não quero ser o que me aconteceu, mas o que fiz com que me aconteceu. É para isso que luto.


A Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio a todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional e social. Com a experiência de quem passou pelo mesmo, enfrenta com profissionalismo os desafios que o cancro infantil impõe a toda a família. Momentos difíceis tornam-se possíveis de viver quando nos unimos.