Domingo passado, dia 10, Evo Morales anunciou na televisão que se demitia, juntamente com o vice-Presidente, Álvaro Gárcia Linera, “por sugestão das forças armadas”. Na quarta-feira aceitou o convite para se exilar no México.
Para as esquerdas, um pouco por todo o mundo, o cenário era óbvio: mais uma vez um presidente eleito democraticamente era derrubado por um golpe militar, certamente apoiado pelos Estados Unidos e pela elite branca do país, que constitui 5% da população. Os líderes sul e centro-americanos reagiram de acordo com as suas ideologias: Lula lamentou, Bolsonaro aplaudiu, Guaidó afirmou que era a “inspiração” que falta para a Venezuela, enquanto Maduro condenou “categoricamente o golpe realizado contra o nosso irmão presidente”. Ortega, na Nicarágua, também mostrou indignação. Quanto a Cuba, nem é preciso adivinhar: Miguel Díaz-Canel tuitou uma “forte condenação” pelo golpe.
Já a Argentina, que está na mão dos peronistas, que são socialistas para a direita e populistas para a esquerda, Alberto Fernandez usou um tom mais suave, mas também não gostou. E Lopez Obrador, que ofereceu asilo a Evo no México, afirmou que reconhecia a “atitude responsável” do demissionário, que “preferiu resignar a expor o seu povo à violência.” (Sobre esta violência, se verá a seguir.)
Bolsonaro, o único líder do subcontinente abertamente pró-americano e anti-esquerda, deve ter mandado alguém do Ministério das Relações Exteriores redigir o tuíte, porque foi mais suave do que lhe é habitual: “Denúncias de fraudes nas eleições culminaram na renúncia do Presidente Evo Morales. A lição que fica para nós é a necessidade, em nome da democracia e transparência, (da) contagem de votos que possam ser auditados.”
Mike Pompeo, o Secretário de Estado (Ministro dos Negócios Estrangeiros) norte-americano, também disse que a renuncia de Morales era boa para democracia.
Neste tuíte está, precisamente, uma das intrigâncias da questão: o que fez cair Evo Morales? A sua abdicação é o final dum processo em crescendo, do qual ele é o principal responsável. Ou seja, se houve golpe, tecnicamente, pelo menos, foi como resultado das atitudes do ex-Presidente nos últimos anos e particularmente nos últimos dias.
Em 2014, ao terminar o seu segundo termo, Evo tentou mudar a Constituição para ultrapassar a limitação de dois mandatos. Como não conseguiu no Legislativo, usou o Tribunal Constitucional, com juízes por ele escolhidos, para subverter o processo. Ao ganhar as eleições, declarou que era “um triunfo dos anticolonialistas e anti-imperialistas” e dedicou a vitória a Castro e Chávez.
Em 2016, a meio do terceiro mandato, organizou um referendo para poder candidatar-se pela quarta vez. Mas nessa altura já havia relatos de corrupção dentro do seu partido, e especialmente a acusação de que teria beneficiado a companhia chinesa onde trabalhava uma namorada, Gabriela Zapata Montano. O resultado foi uma derrota no referendo, a primeira vez que a sua base mostrou sinais de desconfiança. Esses sinais rapidamente cresceram em manifestações populares, reprimidas pela polícia.
Vendo que não conseguia uma legitimação democrática, Morales recorreu ao Supremo Tribunal, também formado por partidários, para contrariar o expresso na Constituição e legislar que não havia limites de mandatos. Na decisão, o tribunal criticou o resultado do referendo, que atribuiu ao “imperialismo norte-americano.” A população mais pobre, que tinha constituído o seu apoio incondicional, engrossou as manifestações. Os bolivianos gostavam da governação de Morales, mas achavam que era altura de alguém o substituir. O que se comentava é que ele deveria ter preparado um sucessor, para sair em glória; mas Morales parecia considerar-se providencial, a única pessoa que podia conduzir a Bolívia ao desenvolvimento e justiça social.
Neste 20 de Outubro decorreu a primeira volta das eleições, e Evo ganhou com 47,1%. Mas a Organização dos Estados Americanos, considerada independente por todas as cores políticas, emitiu um comunicado a 9 de Novembro denunciando diversas manipulações no processo eleitoral, como alteração dos registos e assinaturas forjadas. A contagem de votos foi misteriosamente suspensa durante 24 horas, ao fim das quais a sua margem apareceu grandemente aumentada. As manifestações atingiram uma intensidade que a polícia não conseguia controlar. No dia seguinte o Presidente anunciou que faria novas eleições, mas na tarde do dia 9, a própria polícia aderiu aos contestatários. A situação ficou insustentável e no dia 10 o general Carlos Orellana Centellas, comandante das Forças Armadas, declarou que Morales não podia continuar – o golpe que se estava mesmo a ver chegar.
No discurso de renúncia, Evo Morales terminou a dizer: "Deixamos a Bolívia com muitas conquistas sociais. Lamento muito este golpe cívico. Quero dizer-lhes, irmãos e irmãs, a luta não termina aqui. Vamos continuar com essa luta pela igualdade, pela paz”.
Dia 13, a senadora Jeanine Añez Chavez, uma senhora nitidamente vinda das classes possidentes (índia nativa é que ela não é), afirmou-se presidente interina, até que se realizem novas eleições. Mike Pompeo voltou a dedicar algumas palavras à Bolívia: “Os Estados Unidos aplaudem o gesto da Senadora Jeanine Añez de se apresentar como Presidente Interina para conduzir o seu país a uma transição democrática, de acordo com os princípios do Acordo Democrático Inter-Americano”
Estes são os factos. A suspeita – certeza, para muitos – de que houve influência norte-americana na situação não é sem fundamento. A interferência dos Estados Unidos nos países da América Latina, sob a desculpa da Doutrina Monroe (“A América para os americanos”) é extensa e por demais conhecida. Por vezes exercendo influência sub-reptícia, por interposição das forças armadas locais, noutras alturas entrando à descarada nos países, com a sua potência militar superior. Estão registadas incursões no México (1913) Haiti (1891, 1915-34, 1994-99), Honduras (sete vezes, entre 1903 e 1989), Guatemala (1920, 1954 e 1966), Nicarágua (seis vezes, entre 1894 e 1933), Panamá (sete vezes, entre 1895 e 1989) Republica Dominicana (quatro vezes, entre 1903 e 1966), El Salvador (1932) Granada (1983), Venezuela, Chile, Argentina, Haiti... Isto sem falar nos golpes militares que patrocinou aberta ou discretamente, como no Brasil em 1964 e na Argentina em 1976.
O pejorativo “repúblicas das bananas” vem precisamente das acções perpetradas pela United Fruit Company (hoje, Chiquita), que controlava a produção do fruto em todo o subcontinente, construindo vias de comunicação que só a serviam a ela, pagando salários de miséria e controlando os governos nacionais.
O sentimento e a desconfiança fundamentada contra os Estados Unidos permanecem até hoje, apesar de os americanos passarem a interferir muito menos depois do 11 de Setembro, em 2001, quando dirigiram os seus objectivos estratégicos para os movimentos terroristas noutras partes do mundo. Houve a tomada do poder por Castro, em Cuba, em 1953 e, décadas mais tarde, vários países implantaram regimes de esquerda, sem que os americanos pudessem, ou conseguissem, derrubá-los.
Muitos desses regimes acabaram por cair pelas suas contradições, onde é difícil incluir influência dos Estados Unidos – como é o caso recente do Brasil. Contudo, o antiamericanismo está enraizado e serão precisas gerações para o diluir. Sobretudo, é a desculpa de muitos regimes incompetentes para se manterem no poder, como na Venezuela, onde a má administração, o clientelismo e a corrupção de Maduro são com certeza o motivo de descontentamento da população, que não precisa da pressão norte-americana (que existe, evidentemente) para emigrar em massa e protestar constantemente.
É o caso da Bolívia. Não há dúvidas que o regime de Morales desagradava aos norte-americanos; mas também mexia com os poderes da minoria de imigrantes europeus desde sempre instalados no poder. Mas o próprio Evo, que começou por subir o nível da população indígena e melhorar sensivelmente a economia do país, a partir de certa altura entrou num messianismo que alienou uma parte daqueles que beneficiavam da sua acção. Uma análise pormenorizada do jornalista Raúl Zibechi, lista todas as aselhices do Governo boliviano que levaram a este descontentamento. Não deixa de dizer que a situação foi aproveitada pela direita nacional, mas aproveitar não é o mesmo que provocar. Será Zibechi um agente da CIA, como decerto logo se dirá? Mesmo que fosse, os factos que relata são reais.
O que parece é que Evo Morales “não soube estar”. Não é o primeiro bem-intencionado que se deixa levar pelos encantos do poder. Agora, a Bolívia vai partir para outra situação. Se será boa ou não para o país, depende do desenvolvimento dos acontecimentos. Se houver eleições livres, fiscalizadas pela OEA, podemos dizer que é um avanço. Sobretudo se deixarem que Morales participe. Do México, ele diz que vai continuar a luta, sem especificar se será constitucional ou radical. Mais uma vez – quantas vezes já aconteceu e voltará a acontecer? – a decisão está na mão dos militares...
Comentários