Susan Meiselas (n.1948, Baltimore, EUA), gosta de se definir como fotógrafa, sem mais, e faz questão de escolher as histórias que quer contar. A denúncia das injustiças, em especial sobre mulheres, é uma constante no percurso repleto de prémios. Meiselas documentou com a espantosa força descritiva do seu olhar minucioso e sensível, a realidade dos conflitos armados da América Central dos anos 80, a diáspora do povo curdo, a selvajaria da violência doméstica e os quartos escuros da indústria do sexo.

Foi por aí que começou. A série que primeiro lhe deu fama, quando entrou para a agência Magnum, realizou-a ao longo de três verões, entre 1972 e 1975: captou a solidão de jovens prostitutas em cidadezinhas na costa nordeste dos Estados Unidos. Fez mais do que fotografá-las. Cuidou a reportagem completa em áudio, com gravação dos sons de antes, durante e depois do ato com os clientes, também os comentários, de piadas a ameaças por parte dos empresários desse comércio do sexo. Meiselas fez questão de discutir com as raparigas como as mostrava, sem exuberâncias e sem alguma concessão a qualquer manipulação da realidade.

Meiselas deixa claro, no catálogo de uma exposição que apresentou em Paris: “A fotografia tende a não representar toda a verdade, é uma parte dela. É apenas um ponto de partida para construir um relato”.

Entre 1978 e 1980, Susan Meiselas focou-se no combate da guerrilha sandinista pela libertação da Nicarágua que levou ao derrube do ditador Anastasio Somoza e instalação de um governo revolucionário liderado por Daniel Ortega. Naquele tempo, para muita esquerda romântica europeia, as conquistas de Daniel Ortega, Eden Pastora (o comandante Zero, depois dissidente e inimigo), Sérgio Ramirez, Ernesto Cardenal e outros, aparecia como a concretização de uma utopia. Era a ilusão de triunfo dos defensores dos pobres e oprimidos. Foi belíssima a energia inicial para mudar a sociedade do modelo autoritário para a revolução que dava a ilusão de poder democrático de toda a gente, em que todos eram de facto cidadãos. Foi o que Júlio Cortázar definiu como “processo místico” numa Nicarágua “tão violentamente doce”.

O triunfo da revolução sandinista coincidiu com a eleição de Ronald Reagan como presidente dos Estados Unidos. Reagan nunca foi um Trump mas, antes de conquistar reconhecimento mais consensual, foi asperamente contestado pelas esquerdas. Um dos braços direitos de Reagan para a área militar era Oliver North, acérrimo defensor da doutrina “contra”: contra a revolução sandinista e contra a revolução dos aiatolas no Irão. A Nicarágua sandinista passou a estar sob permanente ameaça de invasão. Progressivamente, em poucos meses, o regime que prometia a liberdade e a fraternidade foi-se militarizando, surgiram cisões, caiu a moral revolucionária e a das pessoas, instalou-se o descontentamento. Susan Meiselas contou tudo através das imagens que fixou.

Quatro décadas depois, Daniel Ortega, um dos líderes do movimento revolucionário sandinista que derrubou a ditadura de Somoza, é agora o ditador. Ele tinha sido eleito presidente em 1985, com mandato por cinco anos. Sofreu derrotas eleitorais em 1990, 1995 e 2001. Voltou a candidatar-se em 2005 e nunca mais deixou a presidência que exerce em regime de poder absoluto. Começou por espalhar promessas com o apoio do aliado venezuelano Hugo Chavez, no tempo do petróleo rico. A crise venezuelana fez acabar a ajuda e rebentar as costuras do regime que, em penúria, passou a cortar direitos e a reprimir os críticos. Daniel Ortega, em despótica metamorfose para tentar fortalecer a sua autoridade, fez eleger a mulher, Rosario Murillo, como vice-presidente. Usam o exército e a polícia de choque para conservar o poder, perante a contestação geral na rua. Só em maio e junho, mais de 170 mortos. Os estudantes encabeçam a revolta contra o regime, mas a repressão é brutal.

Carlos Mejía Godoy, célebre cantautor nicaraguense, compositor da Misa Campesina, fala da sua Nicarágua como “um país onde agora a vida não vale nada”. Susan Meiselas, quase 40 anos depois, voltou à Nicarágua, agora para nos mostrar como um dos heróis de 1979 é o chefe dos déspotas de 2018.

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Inesquecíveis tantos concertos e recitais com Maria João Pires, menina e mulher prodigiosa ao piano. A experiência de uma escola popular de música em Belgais, na Beira Interior, já lá vai, colapsou há duas décadas. Maria João Pires foi viver para o Brasil e deixou de vez os concertos. Fez uma canção (“Modinha”), com a amiga Maria Bethânia e, lá em Salvador, volta a dedicar-se à felicidade das crianças: ensina-lhes música, prepara-as para o canto em coro e para o domínio do ouvido e dos instrumentos musicais.

Outros retratos da beleza no planeta. Graeme Green capta assim a natureza.

Primeiras páginas francesas de hoje, com a cabeça nas estrelas.