1. Dilúvio. Cataclismo. O apocalipse sem fim do Brasil. Desta vez (mais uma vez), no Rio de Janeiro, na noite de quarta para quinta. Eu estava em Portugal, ligada por voz ao que acontecia dentro de um táxi carioca ilhado: cercado de água, de centenas de carros, de milhares de pessoas, de milhões de ratos nadando na escuridão, entre as onze e meia da noite e as duas e meia da manhã.
Não precisei de imaginar. Como toda a gente que morou no Rio de Janeiro em algum momento, já caminhei na água mortal que sobe rapidamente pelas partes baixas da cidade, quando a chuva desaba em horas o que devia num mês. E, como todos eles, vi o milagre de uma cidade no apocalipse sem perder a cabeça. Na primeira vez, mal acabada de chegar, chamei a isso Apocalipse Nunca. Achei que o Rio de Janeiro era o lugar onde o apocalipse jamais aconteceria, porque o carioca parecia imune. Isso era tão mentira quanto verdade. Mentira, porque o apocalipse, claro, acontece ali há muito, uma besta gerando a outra. Mas verdade, porque, sim, ainda assim o carioca parece imune.
2. Agora, nove anos depois dessa minha primeira vez como moradora, o prefeito da cidade é o “bispo” da IURD, Marcello Crivella, o presidente do país é Jair Bolsonaro, e o Carnaval que aí vem luta pela vida (samba-enredo: “Brasil chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles e malês / Mangueira, tira a poeira dos porões / Ô, abre alas / Pros seus heróis de barracões”). Quem imaginaria em 2010 que até o samba estaria ameaçado? Minas Gerais mal saiu da nova matança da mineradora Vale, que de natural nada teve: crime privado e de Estado. E o céu cai sobre o Rio de Janeiro, largando em 24 horas as águas de Fevereiro. Natureza + tudo o que o Estado não fez para atenuar.
3. E com as águas apagou-se a luz. O relato que me chegava era de escuridão absoluta, todos os carros parados, vagas castanhas na altura das janelas, gente sendo arrastada pela corrente, gente agarrada à grade do Jardim Botânico para não ser levada, autocarros que chegaram a ter água pelo meio do vidro da frente, com toda a sua altura.
Cercada por morros, a Zona Sul da cidade está presa entre o mar e os túneis, e vários túneis fecharam. Com o vento a atingir 110 quilómetros por hora, mais a chuva encharcando solos, árvores gigantes caíam às dezenas, cortando ruas, esmagando carros. Na sinuosa marginal chamada Niemeyer, uma árvore despencou em cima de um ónibus, matando gente. Uma casa desabou na favela, uma encosta deslizou, mais mortos. Ao todo, à hora a que escrevo, meia-dúzia, nenhum recorde. Mas sempre assombrosa a rapidez com que o Rio cai nas trevas, levado por jorros, vagas, ventos.
No átrio de luxo do Hotel Sheraton avançava-se com água pelo joelho, sofás vogando, alguém filmou. No apartamento de um amigo, onde Vinicius de Moraes morou em tempos, o tecto virou cachoeira, e não houve luz por 12 horas. A amiga ilhada no táxi não sabia de nada disto, só que em volta estava tudo parado, e tudo às escuras, e gritos, pulos no breu, na água. De quem? Arrastões? Gente desesperada? Medo.
3. Sim, mas afinal não. O taxista, preocupado em levá-la a casa, apesar de por horas não ter como andar, ainda achava que era sorte ela estar calma, e ele calmo estava. Quando um pneu rebentou, e a máquina de multibanco não funcionou, e horas tinham passado mas o taxímetro marcava nem o equivalente a 20 euros, o taxista aceitou a alternativa de uma transferência, e torceu para que a cliente conseguisse correr na água até um ônibus, que por ser alto tinha mais hipótese de navegar.
Dentro do ônibus, um jovem motorista ia ao volante de um bando de homens, com um mendigo lá atrás, levantando de um cobertor. Não só o condutor abriu a porta para salvar a minha amiga como aceitou que ela mesma, de pé, orientasse o ônibus, perdido do seu destino original, nem sabendo os sentidos de como chegar a Ipanema. Puro Rio de Janeiro, gentileza nativa do caos, indígena do apocalipse, gentileza do nada e para nada, só porque somos humanos que coincidimos por um instante, e no Rio esse instante torna-se glorioso.
Recém-chegada de um curto périplo por exaustas europas, como me parece mais milagroso ainda tudo isto, que é muito mais do que improviso.
Uma graça que ainda ninguém derrotou.
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