O homem estendeu-me o pão, tinha máscara e luvas e sorria. Tenho a certeza de que sorria porque aprendi a ler nos olhos. Consigo perceber rapidamente o desconforto, a paciência, a simpatia e o enorme aborrecimento. Há mil expressões oculares, não precisamos do resto da nossa cara, da boca que se agiganta num sorriso ou descai em contrariedade. Não precisamos de perceber trejeitos e eventuais estremecimentos das asas do nariz (adoro isto: asas do nariz). Os olhos bastam.

Dizem que contêm a alma, que são como uma caixa de tesouros a guardar o que de melhor temos. Talvez possa ser para a literatura ou para a geografia poética, em dias de pandemia os olhos dos outros, no supermercado, na farmácia, devolvem-me sobretudo a ideia de solidariedade. “Cá estamos”, suspirou a senhora junto à banca da fruta, aguardando que eu metesse as tangerinas no saco de papel. E eu, solidária, a sublinhar “pois, cá estamos”, e os olhos a sorrir. Um sorriso que não contém exactamente uma dose de alegria, apenas um sorriso de aceitação, o sorriso do “tem de ser”. Uma grande amiga, com mais de oitenta anos de idade, repete que nada disto é normal, que as pessoas andam estranhas, que não entende como chegamos aqui.

Ela não cobre a cara com máscara, há mais de dois meses que não sai de casa. Está sozinha, passa o dia inteiro sozinha, a noite inteira sozinha. Não lhe vejo os olhos, mas tornei-me especialista em ler-lhe a voz, porque também a voz se entende nas suas nuances e, com o passar do tempo, custa mais, é-lhe penoso tudo isto, é-lhe incompreensível. No fim da minha vida, mesmo no “finzinho”, acrescenta. Não sei que palavras de alento lhe posso oferecer, ou se as devo oferecer porque, tantas vezes, entendo que a vida na perspectiva desta minha amiga é toda uma outra coisa, depois dos oitenta anos, que expectativas existem? Pessoas mais novas, à minha volta, mostram-se desalentadas, sem vontade. Compreendo que possa ser tentador este registo, que a tristeza nos possa engolir, porém não cedo, todos os dias trabalho, todos os dias faço por rir. A vida continua à nossa espera, não será a vida de outros tempos, mas ainda é vida. E a minha amiga, num suspiro, concorda, ainda é vida, uma espécie de vida.