Perdoem-me a frieza do introito economicista, mas queria que ficasse bem patente que é de riqueza que falamos. Consequentemente, é de perda que falamos também. Os últimos dias por cá foram passados com um nó na garganta por lá - lá, em Moçambique, onde a estranheza duma catástrofe sem precedentes não alienou a familiaridade que nos une àquelas gentes. É difícil imaginar a dimensão do que ali sucedeu, mas mais difícil é não querer imaginá-la. Há uma semana eu estava num quarto de hotel a ver imagens da devastação na TV, e não consigo esquecer o quanto me pesava o conforto do edredão na minha cama. Enxuto, quente, fofo, a sufocar-me. Esse aperto não era sentimento de culpa, era sentimento de perda, de condolência. Sentimento de irmandade.

Integro a primeira geração para quem o saudosismo imperialista/colonialista faz (ou devia fazer) pouco sentido. Talvez eu seja uma pessoa cheia de sorte, ou então cheia de ingenuidade, mas sinto que cresci num período em que os ressentimentos decresciam. Cresci enquanto feridas se fechavam, e as cicatrizes visíveis se tornavam mais vínculos que barragens. Tive até a felicidade de crescer no meio de pessoas com saudades, e que falavam do Ultramar não com a mágoa de algo que lhes pertencia, mas com a melancolia de terem ficado a pertencer-lhe. Cresci com o país a crescer, a aumentar na sua diminuição, a esquecer excisões e a ganhar países irmãos. Talvez esta fraternidade recente, com achamentos mútuos e aculturações simultâneas, seja a página mais gloriosa (e ignorada) dos Descobrimentos. Um redescobrimento.

Se há pouco pedi perdão pela frieza inicial, peço-o agora pelo abalo emotivo. Não consigo subtrair-me da carga afectiva deste texto, e existe demasiada “experiência pessoal” a contaminar a urgência universal do que aqui pretendia escrever. Tal como Ortega y Gasset, “eu sou eu e a minha circunstância”, e a minha circunstância está cheia de Moçambique. A beleza de Lourenço Marques nos relatos do meu pai é sobrepujada pela beleza dos amigos moçambicanos que tenho, a maioria deles literalmente meus irmãos (e eu até faço parte daquela reduzida percentagem de portugueses que sabe como usar o advérbio “literalmente”). As dores deles têm de ser as minhas – é assim que funciona com irmãos, mesmo quando não são parentes. É assim também que funciona com países irmãos.

Hoje devia regressar à escrita com uma crónica, ou um artigo de opinião mas, pelos vistos, só tenho mão para o apelo.

A tragédia assoladora que desabou sobre Moçambique é um chamamento que desaba sobre Portugal.  A ajuda ao nosso alcance não se depara com os 10 mil quilómetros de distância, mede-se antes pela urgência e disponibilidade com que nos acercamos de um irmão aflito.

Há apertos que estreitam laços, e não leiam isto como uma alegoria fútil, mas como uma oportunidade.  A devastação causada pelo ciclone Idai é inimaginável, então façamos também crescer a nossa ajuda para além do que se consegue imaginar. Há apertos que entrelaçam dedos; é hora de andar de Mão Dada com Moçambique.