Restos de impérios

Ao escoar-se pelo ralo, o Império Britânico foi deixando umas pingas na banheira — umas ilhas aqui, umas extravagâncias acolá (como o facto de a Jamaica ter um rei extraordinariamente parecido com o ex-príncipe Carlos), umas bases militares a complicar Chipre. Aqui bem perto temos um desses restos: Gibraltar, cidade britânica ao sol andaluz, uma colónia na Europa, um pedaço de território que os espanhóis querem para si e que os ingleses (desconfio) não se importariam de lhes dar não fosse dar-se o caso de os habitantes quererem continuar a ter o mesmo rei que os jamaicanos. 

Aquele pedaço de Península Ibérica já é colónia desde o início do século XVIII, por cedência perpétua de Espanha no final da Guerra da Sucessão. A cedência foi perpétua, mas Espanha não perdeu a esperança de receber de volta o presente. A pequena fronteira chegou a ser completamente encerrada. Isolando-os, Espanha pensou que conseguiria convencer os habitantes do Peñón a mudar de rei. Não resultou. 

Uma cidade governada pelo Reino Unido encostada a Espanha que teve de viver isolada muito tempo — sem surpresas, o território é quase independente. Os espanhóis não a podem governar e os ingleses, desde que fiquem com espaço para marinheiros e afins, não querem propriamente saber o que fazem os habitantes da mais famosa Rock do mundo. 

O território tornou-se, assim, num país em miniatura, o que tem o seu encanto (se ignorarmos algumas manigâncias fiscais). Lembra-me aqueles barcos dentro de garrafas ou cidades dentro de globos de neve. São objectos que parecem reduzir a complexidade do mundo a algo que conseguimos abarcar com a mão. Também Gibraltar parece ter tudo ali, concentrado, como um país de brincadeira ou inventado por um romancista para cenário de um policial — ou talvez um país-modelo, para uma criança aprender na escola. Há a Casa do Governador, a Estação de Correios, o Parlamento, o Teleférico, o Aeroporto, a Praia… 

Continentes e países

Subimos no teleférico e, chegados ao cimo da Rocha, olhamos para sul. Vemos dois continentes, um mar e um oceano. Estamos em cima de uma das Colunas de Hércules; do outro lado, vemos a outra coluna, Ceuta, pedaço de Espanha que Marrocos quer (os dois lados do estreito são espinhas geopolíticas). Desde sempre que estas duas cidades andaram a trocar de mãos. Gibraltar — o Monte de Tarik — marcou o início da conquista muçulmana da Península; Ceuta marcou o início da tentativa de conquista portuguesa do Norte de África (mais tarde, ficou espanhola quando o resto do reino escolheu D. João IV para rei). Entre as duas colunas, passaram no rodopio da história, sem ordem, romanos, americanos, fenícios, russos, gregos, portugueses — e hoje muitos cargueiros chineses. 

Voltemo-nos para norte. Olhando para a cidade, lá de cima, podemos olhar para o mapa e compará-lo com o território. A cidade está à esquerda. À direita, umas quantas praias — um Algarve para gibraltinos — e a costa andaluza até ao horizonte. 

Macacos e línguas

Olhámos para sul, olhámos para norte. Se olharmos para os pés, encontramos um macaco a roubar-nos o telemóvel. Os macacos de Gibraltar confundem-nos: estamos tão habituados a ver os seus companheiros em jardins zoológicos ou à distância prudente da televisão que ficamos convencidos de que aqueles serão sossegados como os outros. Não: são animais selvagens, que não se coíbem de roubar o que podem e, depois, sentar-se no parapeito a observar os primos humanos a construir cidades, países e fronteiras lá em baixo. 

Os macacos e os seres humanos partilham muita coisa, incluindo uma predilecção pelo sentido da visão. Gostamos muito de ver! Nós, no entanto, pegámos no sentido da audição e usámo-lo para criar aquilo que nos torna humanos: as línguas. 

Pois, em Gibraltar, que línguas encontramos?

Nas placas, quase tudo está em inglês, a única língua usada oficialmente. Se andarmos pelas ruas, ouvimos muito castelhano, com sotaque mais ou menos andaluz. Também ouvimos inglês — e ouvimos até pessoas que falam inglês padrão e castelhano andaluz, numa mistura curiosíssima que prova como falar ou não o padrão não é questão de maior ou menor capacidade linguística. 

Se estivermos muito atentos, talvez ainda oiçamos alguém a falar llanito, o particular idioma de Gibraltar, criado pelo contacto entre inglês e castelhano, com pepitas de maltês, genovês, português e até uma ou outra palavra de hebraico. Por baixo do peso do inglês e do castelhano, o llanito está hoje a desaparecer, mas é uma das marcas da identidade de Gibraltar. 

O llanito não é uma simples mistura de palavras das duas línguas — tem uma estrutura própria e usos sistemáticos. É uma verdadeira língua criada por contacto. Não vai acontecer, mas é possível imaginar um mundo em que o llanito se torna uma língua padronizada, usada por milhões. Afinal, se virmos bem, o próprio inglês é uma língua construída por contacto entre o inglês antigo, o nórdico dos viquingues e, depois, o francês normando (e isto já é simplificar muito a história). 

Já houve tentativas de criar uma ortografia do llanito. Nesta página, encontramos textos como este: 

“Er Llanito ê un Iberou Ròumants làngwij ke tiene’r Westen Andalûh komo lingwìstik beis. Ouva lô s’anyô ête lingwìstik beis s’a vîto ìnfluentst polô làngwijez ke històrikli s’an avlàu n’Hivertà (Henovêh, Haketìa, etc). Nlô s’ùrtimô 70/80 anyô er Llanito s’a vîto strongli ìnfluentst pol’Inglêh Vritàniko tanto à un lèksikol komo à un gramàtikol lèvol.”

O texto começa: “O llanito é uma língua ibero-romance que tem o andaluz ocidental como base linguística.” Deixo o resto como exercício de tradução para quem quiser...

A tempestade das línguas

Enquanto falar de uma só terra, o llanito é também um caso saliente de um fenómeno universal. Em todos os lugares do mundo, o uso das línguas é único. Gibraltar é especial por juntar duas línguas muito conhecidas e por ser um território separado dos vizinhos por uma fronteira; aqui, as línguas misturam-se como num tubo de ensaio. No entanto, todas as terras misturam as palavras à sua maneira, embora com menos fronteiras. Aliás, cada família, cada bairro, cada turma, cada grupo de amigos têm a sua forma particular de falar... Podemos até aproximar o nosso microscópio linguístico até perceber que cada pessoa tem uma mistura única de vocabulário, pronúncia, sintaxe — os linguistas usam o termo idiolecto: a língua tal como é usada por um indivíduo. 

Do borbulhar da língua na rua, nascem depois os padrões, construções artificiais, para uso geral, que acabaram por ganhar tanta força que hoje esmagam muitas das particularidades regionais. No entanto, mesmo neste mundo onde os padrões são tão importantes, todas as línguas mantêm variação — que é particularmente visível (ou audível) em terras como Gibraltar, pelo efeito multiplicador do contacto entre idiomas diferentes. 

A linguagem humana está sempre sujeita a forças centrípetas, como os padrões, o sistema educativo, o prestígio social de certas palavras ou construções, e a forças centrífugas, como a criatividade individual, o contacto entre línguas e o prestígio oculto das palavras que usamos só entre nós.

O llanito tem palavras de muitos lugares. A língua desfaz-nos, no fundo, a ilusão com que começámos. Terras como Gibraltar são tudo menos cidades dentro de globos de neve: por mais fronteiras que se criem, ali foram parar pessoas e palavras de muitos lugares, numa mistura que torna a cidade particularmente interessante.


Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. Apresenta, com Cristina Soares, o programa Palavrões da Ciência.