O mundo foi povoado pelo Homo sapiens nos últimos 100 000 anos — mas essas antigas migrações faziam-se durante gerações imensas, que não tinham a escrita para comunicar com os descendentes, e que se moviam à procura de algo ou para fugir de algo. Cada um dos seres humanos que povoou a Terra não sabia que estava a povoar a Terra — e muito menos sabia que estava num planeta vagamente redondo. Cada uma dessas pessoas conhecia apenas uma ínfima parte do planeta — e a Humanidade inteira era o seu grupo e pouco mais.

Já todos sabiam, no entanto, falar línguas humanas e tinham uma inteligência semelhante à nossa. As preocupações teriam, em certos momentos, muito que ver com as nossas. Como hoje, passávamos parte da vida sem saber o que devíamos fazer, a aprender a nascer, a crescer e a morrer.

Agora, pergunto: se olharmos para esses grupos de seres humanos — podemos mesmo imaginar um grupo de algumas dezenas a entrar pela Austrália, não se sabe bem como (a nossa ignorância do passado é grande), há uns 50 000 anos — e se pensarmos em tudo o que sabemos ou julgamos saber hoje, será justo afirmar que aqueles seres humanos eram muito mais ignorantes que nós?

Enquanto grupo humano, é óbvio que sim. A Humanidade, no seu conjunto, sabe hoje muito mais do que há 50 000 anos.

Já se pensarmos em cada um dos seres humanos individuais, a história é diferente. A nossa ignorância pessoal é medida ou sentida — tanto quanto é possível medi-la ou senti-la — em comparação com alguma coisa; em geral, comparamos a ignorância (quase sempre dos outros; a nossa é invisível) com aquilo que todos sabem (raramente todos sabem alguma coisa, mas adiante) ou se pensa que deveriam saber.

No fundo, há duas ignorâncias humanas: a ignorância colectiva e a ignorância individual. Na época das grandes migrações, as duas ignorâncias estavam muito mais próximas do que hoje. Cada ser humano era pouco ignorante em comparação com o conhecimento colectivo do seu grupo.

Já a nossa é uma época em que uma pessoa — qualquer pessoa — não sabe quase nada em comparação com o conhecimento humano. Aliás, nem é preciso compararmos a ignorância individual com todo o conhecimento humano. O meu grupo de amigos, no seu conjunto, sabe muito mais do que eu. Mais: cada um de nós sabe coisas muito diferentes dos outros. Também aí vivemos numa época muito diferente de há 50 000 anos, em que as diferenças de conhecimento entre as pessoas seriam bem menores.

Façamos outra viagem, em direcção ao futuro. Daqui a 100 000 anos, se a Humanidade ainda existir (o que não será muito provável — mas quem sou eu para o dizer?) e não tiver havido nenhuma tremenda regressão, é fácil imaginar que os nossos descendentes olhem para a nossa época como mais uma na imensidade de épocas ignorantes, não muito diferente das eras de há 50 000 anos.

Também é bem provável que a capacidade cerebral não aumente assim tanto em 100 000 anos, pelo menos não o suficiente para acompanhar a cada vez maior complexidade do mundo e o conhecimento cada vez mais alargado do Universo. Vamos precisar de cada vez mais ajuda: hoje, temos a escrita, os livros, as escolas, as bibliotecas, os computadores — tudo ferramentas para aumentar a nossa pouca capacidade para viver num mundo mais complexo do que imaginamos. Talvez no futuro a própria inteligência artificial se torne imprescindível para viver.

O que não muda é isto: não conseguimos viver sozinhos — e, para não vivermos sozinhos, temos de aprender a viver na tremenda complexidade dos grupos humanos — e só aprendemos errando muito. Enfim, não vale a pena andarmos por aí convencidos de que já sabemos tudo o que é preciso (há sempre mais a aprender) e que os ignorantes são os outros. Ignorantes somos todos.

(Esta crónica é a base do primeiro capítulo da Breve História da Ignorância, um audiolivro gratuito que estou a publicar no canal Pilha de Livros.)

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas na página Certas Palavras e fala sobre livros na Pilha de Livros. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita. A crónica acima é baseada num capítulo deste último livro.