Desde há dois meses que a personalidade original de Boris Johnson tem sido intensamente escrutinada e abundantemente analisada. Até Miguel Esteves Cardoso, com a superioridade moral da sua educação britânica, sentiu vontade de comentar sobre o novo Primeiro-ministro. Não acrescentou nada que não tivesse sido já dito, porque já foi tudo dito por todos os analistas e achistas nacionais e mundiais.
Do mesmo modo, há três anos que a personalidade também original de Donald Trump tem passado por um crivo diário, facilitado pelo facto dele ter optado por pensar em voz alta diariamente, sem filtros, no Twitter.
Até já houve quem comparasse os dois, quando de facto são completamente diferentes. Ambos nacionalistas, talvez seja o único ponto comum que se lhes pode encontrar (fora o cabelo exuberante, mas isso é um fait divers). Mas os seus nacionalismos são bastante diferentes. Ah, sim, e narcisistas, mas também aí o seu egocentrismo manifesta-se em comportamentos quase opostos. (Trump leva-se a sério, sem margem para humor; Jonhson faz de conta de que não se leva a sério e usa o humor como uma arma.)
Mas a questão que gostaríamos de levantar, a propósito destas duas figuras que mudaram o paradigma do que é corretamente político, é até que ponto o carácter serve como referência à eficiência da governação.
Ou seja, antigamente – e não foi há tanto tempo assim – considerava-se que um político devia ter certas qualidades. Mesmo quando se achava que não as tinha, o que acontece cada vez mais, era sempre medido em referência a elas: honestidade, franqueza, hombridade, ética. São palavras que se tornaram antiquadas, o que já diz muito da situação em que estamos, mas são qualidades que ainda sabemos identificar quando as encontramos. Portanto, mesmo que esse político fosse um mentiroso compulsivo e efabulador em série, sentia-se sempre na obrigação de se apresentar como uma pessoa honesta e bem-intencionada. Se os cidadãos acreditavam ou não – cada vez acreditam menos – mesmo assim “exigiam”, por assim dizer, que ele fizesse esse papel de que era o que não era.
A desfaçatez de não ter essas qualidades e orgulhar-se disso, abertamente, era coisa nunca vista.
Mas, por razões que a razão, ou pelo menos bom senso, não explicam, esse paradigma do homem íntegro deixou de interessar os cidadãos. Demos os exemplos de Boris Johnson e Donald Trump, precisamente porque são eles que representam esta desfaçatez, enquanto outros dirigentes com os mesmos traços continuam a fazer o possível por parecer pessoas focadas e controladas. Quer dizer, um Duterte, por exemplo, ou um Maduro, podem ser verdadeiras catástrofes para os seus países, mas apresentam-se como probos e bem-intencionados, e a minimizar os críticos.
Mas a questão ainda não é essa. A questão é até que ponto um prepotente mais declarado não fará um melhor trabalho do que um sensato mais astuto. Ou, em linguagem corrente: quem nos pode governar melhor, defender com mais eficiência os nossos interesses? Uma pessoa com carácter, ou um fala barato?
Dirão todas as figuras públicas que, evidentemente, nem se pode por esta questão. Ninguém quer um aldrabão a mandar no país. Mas isso não é verdade, pelo que indicam votações e referendos um pouco por toda a parte. As pessoas querem um líder que lhes proporcione vantagens sobre os outros, não um sensato intelectual que procure equilíbrio de interesses. A solidariedade entre as nações, que sempre foi mais uma figura de estilo do que uma realidade, acabou por ser vista como uma prova de fraqueza. Queremos ter tudo e não dar nada aos outros. Na impossibilidade, queremos o mais possível para nós e o menos possível para quem não é do nosso sangue, terra, ou crença – ou as três juntas.
Voltemos a Trump e Johnson: é verdade que parece leviano comparar uma governação de três anos com outra que neste momento tem apenas alguns dias. Mas poderíamos dizer que estes dias são mais do que suficientes para ver o carácter de quem escolhemos para nos conduzir pelo labirinto diabolicamente minado da comunidade das nações.
Quem não se lembra de que a primeira grande embirração de Trump era o número de pessoas que tinham assistido à sua tomada de posse? As fotografias mostravam claramente que a tomada de posse de Obama tinha sido maior, mas Trump não aceitava essa realidade e, mais, não se calava sobre ela, como se fosse um assunto com grande importância. Que interessa para o avanço do país, o progresso da indústria e a eficiência dos serviços o número de pessoas que tinha ido vê-lo jurar sobre a Bíblia? Desde então, Trump tem mentido descaradamente. Segundo o “Washington Post”, que mantém um fact check diário, já mentiu mais de dez mil vezes nestes três anos de presidência. Isso não abala as suas bases, que até declaram para as televisões que o que interessa é o que ele faz e não os defeitos de carácter que revela.
Também Johnson está a mostrar, nos seus primeiros dias, que o importante é captar as pessoas com o seu entusiasmo, mesmo que não tenha hipóteses viáveis de realizar o que promete. Numa reportagem da Sky News, os inquiridos ressaltaram a sua determinação para resolver o problema do Brexit, em oposição às hesitações de Theresa May. Na primeira sessão no Parlamento, Johnson achincalhou Jeremy Corbin com uma verve e uma graça inimparáveis, embora não tenha feito nenhuma acusação substanciável. Corbin, marxista sem humor, ficou calado e sisudo, furioso. Percebeu que as eleições que tanto quer lhe vão correr muito mal com Johnson como adversário.
Sam Knigt, num comentário no “The New Yorker” detalha muito bem esta situação: “Se podemos ter algum consolo, é que Johnson não é nenhuma espécie de extremista. Por temperamento e educação, é um liberal urbano: pró-vida, pró-imigração, tolerante perante a diversidade, com uma educação cosmopolita e preparado para aceitar um consenso sobre as alterações climáticas. O problema é que também é tão pouco sério e sem princípios que se torna impossível saber se manterá estas posições debaixo de pressões significativas. Não se deve comparar Johnson com Donald Trump, são muito diferentes. Partilham a capacidade de desviar constantemente a atenção (para o que é importante), e uma incerteza enervante sobre o que farão a seguir”.
Mas isto é um intelectual a comentar, muito naturalmente preocupado com o futuro incerto que estes líderes representam. E até nem está a ver algumas evidências, como o elitismo da educação de Jonhson, contrário à tolerância racial e social. Para o “povo” – a grande massa de pessoas que quer apenas que a sua tribo se dê melhor na vida do que as outras tribos – o que interessa é o optimismo, a acção e a convicção de que aqueles homens vão tornar as suas vidas melhores. Sinais contrários não são levados em conta. O que fica para a fotografia é a nova atitude de superioridade assumida, uma vez que a velha atitude de cordialidade e consenso não levou ao prometido bem-estar.
Diz-se que foi a Internet as redes sociais que exacerbaram o egocentrismo e a falsidade como valores. Mas esse egocentrismo e pouco interesse na verdade já existia antes, apenas lhe faltava a montra das redes.
Quando se percorrem as mais frequentadas, como o Facebook, Twitter, Instagram, Snapchat, 4chan, Discord, Flickr, hi5, Linkedin, MySpace, Pinterest, Reddit, StumbleUpon, Weeworld – são centenas, entre mundiais, nacionais e sectoriais – o que se encontra é sobretudo uma exibição narcisista, muito superficial e sem qualquer preocupação ética. Há muitas opiniões políticas, mas mais focadas nos fait divers do que com uma explicação equitativa das decisões políticas. Para muitos destes milhões, o carácter não é uma prioridade. Porque hão-de exigir algum carácter aos dirigentes que lhes prometem prosperidade e bem estar? Na China, as principais plataformas, TikTok e Weibo, com dezenas de milhões de seguidores, são fortemente censuradas quanto a qualquer conteúdo político ou negativo; ninguém se importa, porque ninguém se interessa por política (o que serve a política oficial) e ninguém quer parecer negativo ou rezingão. (A excepção é Hong Kong, com um estatuto especial - vamos ver até quando...). É só alegria e felicidade, os sentimentos expressos com a profundidade dum pires de café.
Nas redes internacionais e nacionais sem censura, as pessoas queixam-se constantemente dos políticos, da corrupção e ineficiência, mas é mais um desabafo do que uma decisão levada às urnas. Criticar descomprime, alivia, mas o que interessa é o que se tem a ganhar. Já na década de 40 o político brasileiro Adhemar de Barros usou o slogan “Rouba mas faz” para se eleger governador de São Paulo. Um precursor, portanto. E aqui, em Oeiras, o conselho com mais pessoas de nível universitário do país, quando se perguntava, em 2017, porque elegeram Isaltino de Morais, condenado por fraude fiscal, branqueamento de capitais e abuso de poder, respondiam que era o melhor presidente de câmara do país, e isso é que interessava.
O carácter deixou de ter valor, o que vale é a eficiência. Vamos ver, com o passar dos anos, os resultados deste novo paradigma. Se calhar, funciona.
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