Vejo muitas coisas no seu país como profundamente negativas: a forma como os mais pobres são deixados sem protecção social, a dificuldade no acesso dos mais frágeis ao sistema de saúde, ou o modo arrogante como os Estados Unidos se comportam em muitas questões internacionais, por exemplo. Ou ainda o facto de a pena de morte continuar a ser aplicada em vários Estados, o racismo estar tão presente no sistema judicial, ou ser tão fácil alguém (mesmo crianças ou adolescentes) matar outras pessoas em escolas ou lugares públicos.
Isso não me faz esquecer que o seu país também soube ajudar a Europa quando foi necessário lutar pela liberdade contra a tirania. No entanto, no último ano, a sua acção como Presidente em relação à situação no Médio Oriente deixaram-me muito desiludido. O que está a acontecer actualmente na Faixa de Gaza é um genocídio e a política dos EUA tem sido vergonhosa. Com isto, não desculpo o que aconteceu em Israel em 7 de outubro de 2023, um crime hediondo. Israel tem o direito de existir, mas o que o governo israelita está a fazer neste momento em Gaza, na Cisjordânia e no Líbano é igualmente criminoso, terrorista e hediondo. Que terá como consequência garantida aumentar o ódio contra Israel.
Senhor Presidente, já viu as imagens das crianças e mulheres mortas, muitas delas à queima-roupa ou pelas costas? Ou do cinismo de muitos militares israelitas enquanto bombardeiam edifícios civis e condenam um povo à fome e à sede? Ou os hospitais sem meios para cuidar dos feridos (mais uma vez, muitas crianças e mulheres)? Para mim, foi impressionante ver por exemplo, há tempos, uma reportagem da Al Jazeera que mostra toda essa barbárie do que muitos seres humanos são capazes de fazer a outros seres humanos, apenas porque pertencem a um povo diferente (“primos”, poderíamos dizer).
E já se apercebeu que, com os seus ataques ao Iémen, ao Líbano e ao Irão, Israel está a incendiar todo o Médio Oriente e, com ele, o mundo inteiro? Não queremos uma nova tragédia como a Segunda Guerra Mundial; mas o governo de Israel, com o que tem vindo a fazer desde há um ano, com o apoio dos Estados Unidos, está a conduzir-nos a todos para uma nova tragédia. E apesar do seu apoio a Israel, viu como Netanyahu celebrou a vitória do adversário da sua vice-Presidente? Mais uma vez: para um católico como o senhor, a principal prioridade deveria ser alcançar a paz e não alimentar a guerra continuando a vender armas a um país que continua a matar milhares de pessoas inocentes. Deus pedia-lhe (pede-lhe, ainda) uma política muito diferente nesta matéria, senhor Presidente. Agora mesmo.
Caro Presidente Biden:
Na última terça-feira, muitos desejávamos vivamente que a sua vice-Presidente ganhasse as eleições e com isso impedisse que o discurso do ódio, da mentira compulsiva, do narcisismo mais egoísta que temos visto na política mundial voltasse à Casa Branca. Mas eu esperava sobretudo que a sua Administração tivesse compreendido a tempo que era necessário pôr termo à guerra em Gaza e ao cinismo do Governo israelita, que pratica um genocídio sistemático e a conquista de novos territórios sob a capa do direito a defender-se do terrorismo do Hamas e do Hezbollah. Mas que já se esqueceu dos reféns, que só servem como pretexto remoto para continuar a matar e a espezinhar um povo inteiro. E a guerra é ainda o argumento para que o líder israelita fuja à justiça do seu país e às acusações de corrupção. Grande favor que o Hamas fez ao líder israelita, não foi, Presidente Biden? Quem diria que os inimigos, no fundo, fazem o jogo uns dos outros, triturando os seus povos sem se importarem com os que mais sofrem – os que são bombardeados e morrem à fome, de um lado, os que estão (ainda?) como reféns e as suas famílias, do outro?
Teria sido importante também que tivesse ajudado a acabar com outras guerras, como a da Ucrânia, negociando a paz a tempo, antes que agora o seu sucessor venha a abandonar aquele povo.
Isso não aconteceu e a democracia, no seu país e no mundo, sofreu agora um grave revés. Não foi de agora, claro. Já tinha sido assim há oito anos, já vem sendo assim em muitos países (incluindo o meu) e no seu desde há muito tempo. Porque achamos que na democracia devemos permitir tudo – incluindo os mecanismos que a corroem por dentro. Esquecemos que, há 90 anos, também foi em eleições democráticas que o nazismo ascendeu ao poder, iniciando aí a produção da máquina de terror e morte.
O que temos visto, senhor Presidente, com tiranos como Putin ou Xi, como Erdogan ou Modi, como Ortega ou Maduro, ou com mandantes da guerra como Netanyahu ou Khamenei, não nos deveria deixar descansados, sobretudo aos que prezam a liberdade como um dos valores fundamentais da convivência humana. O problema é que, durante muitos anos, demasiados anos, o seu país, o meu e os outros membros da União Europeia, que deveríamos liderar em conjunto um movimento de democratização do mundo, se deixaram enredar nos negócios com aqueles tiranos. Chegámos ao ponto de, aqui na Europa, pagarmos à Rússia pela energia e à Turquia para que o autocrata que ali detém o poder se livre dos migrantes e dos refugiados em nosso nome, desrespeitando a mais básica dignidade e direitos humanos. E a Europa, e o seu país (construído por imigrantes que conquistaram à força as terras dos navajos, dos sioux, dos cherokee e de muitos outros povos originários) traíram, nesse aspecto, as suas heranças de pátrias da cidadania e dos direitos humanos, que têm no cristianismo um dos seus fundamentos, como o senhor sabe melhor que eu.
Caro Presidente Biden:
O dinheiro, senhor Presidente. O poder do dinheiro está a arruinar a vida de povos inteiros e a minar as democracias. O seu país acaba de ser também vítima do poder de magnatas para quem a verdade, a dignidade e a humanidade nada contam. Claro, houve muitos factores que levaram a este resultado e imagino que o senhor esteja a analisar por estes dias, com os seus consultores, as estratégias que falharam, as mensagens que não passaram, as dinâmicas que não resultaram. Mas o dinheiro compra tudo (quase tudo, vá, porque a dignidade só a cede quem quer), controla tudo, manipula tudo – políticos, mas também muitos cidadãos, incluindo até alguns jornalistas e alguns líderes religiosos.
Quem tem dinheiro alia-se demasiadas vezes a quem quer odiar, matar, fazer a guerra – aliás, a continuação dos mais de 60 conflitos no mundo muito deve também ao dinheiro da indústria do armamento, incluindo a do seu país, não é, Presidente Biden? Essa indústria para a qual os bispos católicos do seu país disseram, há mais de 40 anos, que um crente deveria evitar trabalhar por ser a antítese do que o Evangelho propõe.
O senhor, caro Presidente, estará de acordo comigo em que a mensagem do seu adversário indirecto de rejeição dos migrantes e refugiados é o oposto do que defende o cristianismo e a tradição judaico-cristã – e que, por isso, o resultado de terça-feira traduz um grave falhanço da transmissão dos valores essenciais do Evangelho e do pensamento social católico. Também imagino, por isso, que estará de acordo em que, enquanto católico, deveria ter feito mais pela paz, pela redução da possibilidade de acesso às armas ligeiras (que no seu país matam pelo menos 50 pessoas por dia), mas também pela redução do armamento no mundo. De facto, andamos há demasiado tempo a aumentar as despesas de fabrico de armas. Há poucos meses, ficámos a saber que as instituições financeiras do seu país investiram no ano passado 500 mil milhões de dólares no sector do armamento – mais de metade do investimento total, mas milhões de vezes mais do que deveria ser, um escândalo imenso e inominável, que serve apenas para matar os povos de Gaza, do Líbano, do Iémen, da Síria (ainda se lembra, senhor Presidente?), da Líbia, do Nagorno-Karabakh, do Sudão do Sul, do Curdistão, do Sara Ocidental, e dos tais 60 países envolvidos em guerras e dos quais quase nunca falamos.
Sei que o lugar que ocupa, e que vai deixar dentro de dois meses, não é fácil, sobretudo se falamos de uma pessoa razoável, como ainda tendo a considerá-lo. Mas foi pena o senhor não se exigir mais a si mesmo, precisamente em nome dessa decência que agora vai de novo ceder o passo à mentira compulsiva, ao fomentar do ódio e à afirmação narcísica do poder.
Caro Presidente Biden:
No discurso de aceitação da derrota, a sua vice-Presidente disse algo importante, creio que citando Aristóteles: “Quando está escuro é que se consegue ver as estrelas.” E pediu para enchermos “o céu com a luz de estrelas, de optimismo, de verdade, serviço e fé” – quatro valores importantes para estes tempos toldados por tanta desesperança, mentira, egoísmo e cepticismo.
Talvez o senhor Presidente tenha lido já uma pergunta do livro de Job, no início do capítulo 7. No meio dos infortúnios tremendamente injustos que o atingem, Job dirige-se ao seu Deus: “A vida do homem sobre a terra, não é ela uma luta?”
Na encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco, que certamente o senhor conhece, podemos ler (no parágrafo 109): “Alguns nascem em famílias com boas condições económicas, recebem boa educação, crescem bem alimentados, ou possuem por natureza notáveis capacidades. Seguramente não precisarão dum Estado activo, e apenas pedirão liberdade. Mas, obviamente, não se aplica a mesma regra a uma pessoa com deficiência, a alguém que nasceu num lar extremamente pobre, a alguém que cresceu com uma educação de baixa qualidade e com reduzidas possibilidades para cuidar adequadamente das suas enfermidades. Se a sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para tais pessoas, e a fraternidade não passará duma palavra romântica.”
É aqui que estamos a falhar há muito, senhor Presidente – o seu país também. Oxalá, Presidente Biden, não esqueçamos a importância da luta de que nos fala o livro de Job, para que possamos voltar a ver muitas estrelas do optimismo, de verdade, serviço e fé. E da fraternidade. Mas tenho pena que o senhor não tenha feito mais por esta ideia, travando a guerra e pensando em quem diariamente anda a fugir das bombas e a rastejar por comida.
Deus o abençoe, Presidente Biden, nestes tempos de uma triste despedida. E a nós todos também, que bem precisados estamos.
*A primeira parte deste texto, sobre a guerra em Gaza, foi reformulada a partir de uma carta enviada há dias ao Presidente Joe Biden por correio electrónico
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