Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.


Nesse dia, conheci Ahab. Ao leme do Pequod, ali estava ele, ao longo de mais de mil páginas, dentro do seu casulo a obcecar com Moby Dick. O cachalote, claro, seguia a sua vida como assim tinha de ser, lançava-se pela água como era o seu destino. Talvez encontrasse paz no fundo do mar, o problema era haver aquele homem à tona que queria vingar-se pelo bocado de carne que lhe arrancara de uma perna. Não é que eu me interessasse por baleias ou por caças, o que me prendia àquilo era a obsessão como destino, a pulsão da ansiedade de vingar alguma coisa.

O meu amor à literatura nasceu pela esperança de ver outros, ou de sê-los e poder ser maior do que a minha vida. Haverá um dia em que a covid chegará em bruto aos livros como chegou aos nossos dias. Para já, a experiência de solidão colectiva não tem como se tornar em mais do que a soma dos isolamentos individuais, mas será engraçado ver o que é que o nosso isolamento atinge.

Ainda por cima, por apaixonante que seja chegar-lhes e entendê-los, o inferno são os outros. Sartre escreveu-o em 1944 e a frase vincou-se na memória colectiva como se vincara a apresentação de Ishmael, único sobrevivente da tripulação do Pequod.

"Talvez este estado de cada um em casa possa levar outra coisa à literatura. Várias vezes chegámos à solidão dos outros não lhes permitindo estar menos a sós. Assim, somos só voyeurs do sofrimento alheio, ainda que este possa extrapolar-se e atingir-nos"

A peça “Huis Clos” mostra-nos uma vida pós-morte em que três personagens chegam ao inferno. Nada de fogos ou diabos, o inferno é um quarto fechado onde os três, isolados, se vêem forçados à companhia uns dos outros. O trio é um conjunto de personagens formidável: Garcin, um escritor que quisera ser herói, mas cuja pretensão de heroísmo foi ultrapassada pela sua cobardia; Estelle, que foge da culpa de ter assassinado o bebé que teve com o amante; Inês, violenta, que procura o sofrimento alheio.

Três humanos têm assim esta visão do inferno: confinados numa sala, são o que os outros vêem. Inês tenta seduzir Estelle, que quer Garcin. A primeira tenta pôr um contra o outro, exibindo as suas falhas. Estelle tenta matar Inês, que ri por já estar morta. A vingança de Garcin é amar uma em frente à outra.

Ali, o inferno não é estar a sós, é não haver para onde fugir. E é ter de levar com a imagem de outros sobre os próprios. Neste cenário, não há escapatória: o inferno são os outros.

Sendo o inferno o que falta e o que resta, a vida será ali pouco mais do que a gaiola de pássaros de asas feridas. Com as mesmas asas inúteis se terão sentido os três homens confinados a uma cela na Cidade do México que José Revueltas, em 1969, descreveu com pleno horror a partir da sua própria cela na prisão de Lecumberri. Ali metidos como pacotes, os homens revezavam-se para enfiarem a cabeça por uma portinhola. Procuravam não apenas que o oxigénio lhes corresse no sangue, respondendo ao seu impulso biológico, mas também seguir a pulsão do exterior, numa massa de anseios que só os torturava mais. Afinal, esperavam sem saber pelo quê ou até quando. O autor mexicano acompanhou o devaneio do horror do quotidiano em “A gaiola” com traços de oralidade e omnipresença de um confinamento sufocante.

Se eu sou Ishmael, se o inferno são os outros, se uma asa ferida dói mais quando a porta da gaiola está fechada, talvez o paraíso possa ser uma ilha ao sol. Ali foi parar Robinson Crusoe, levado por Daniel Defoe em 1719. Sem mais, Crusoe por ali ficou, só perante o que lhe era estranho, durante 28 anos. Antes de ser resgatado, encontrou canibais e cativos. O livro, que foi ainda o primeiro romance-folhetim, foi buscar inspiração ao naufrágio de Alexander Selkirk, escocês que viveu durante quatro anos numa ilha do Pacífico.

Associa-se sempre a solidão ao ofício de um escritor. Mesmo rodeado de gente, tem de estar a sós consigo, levar até ao limite o que só existe na cabeça. E nem será por uma prevalência de introspecção, mas antes por ser necessário estabelecer uma ordem de coisas que ainda não existem, ou por ordenar as que existem de forma a que a formulação as transforme noutra coisa, e com capacidade de transformar de novo.

Talvez este estado de cada um em casa possa levar outra coisa à literatura. Várias vezes chegámos à solidão dos outros não lhes permitindo estar menos a sós. Assim, somos só voyeurs do sofrimento alheio, ainda que este possa extrapolar-se e atingir-nos. A grande literatura é a que passa uma experiência colectiva, ou que consegue apanhar uma individual de forma tão cáustica que a entendemos como extensível à experiência humana no seu todo.

Não sei o que será de tudo isto, nem me interessa teorizar. Mas estamos em casa como quem esteve ao leme do Pequod, às ondas do que é incerto, e, com o mundo confinado, será pela sanidade mental que se criam obsessões. Se a vingança é obsessiva, a sobrevivência vicia. Depois de mil páginas de vertigem, Moby Dick vai ao seu lanço final, o Pequod vira cacos, Ahad perde a raiva ao perder a vida. Levado pelas ondas, o marinheiro chega a casa. Ainda hoje lhe chamamos Ishmael.

*A Ana Bárbara Pedrosa escreve segundo o antigo acordo ortográfico