Países num relance
Por essa Internet encontramos jogos e desportos ainda mais estranhos que o famoso curling (aquele desporto em que se limpa o chão para levar uma pedra a bom porto). Dei de caras, por acaso, com um jogo online muito curioso: GeoGuessr. O jogo apresenta uma imagem retirada de um qualquer local do mundo, pescada aleatoriamente da função Street View do Google Maps, e os participantes tentam adivinhar qual é o país.
Pode ser uma pequena travessa no interior do Camboja; talvez uma praia indistinta numa ilha da Indonésia; quem sabe uma avenida na capital do Uzbequistão; nada impede que a imagem seja de uma aldeia do Uruguai ou de um beco sem saída nos arrabaldes de Tóquio.
Há vídeos impressionantes de jogadores que acertam quase sempre. É gente que viaja muito — ou gosta de passar horas no Google Maps.
Qualquer um de nós falharia perante uma aldeia das Filipinas — mas quando se trata do nosso país...
Portugal numa rua qualquer
Há uns meses, ao passear por Ponte de Sor (a terra da minha mulher), parei e olhei para a rua que tinha em frente. Não havia nada que me levasse a tirar uma fotografia naquele momento, mas mesmo assim tirei.
Não estamos a falar de nenhuma rua famosíssima de Lisboa ou do Porto, nem sequer da rua principal da terra (embora seja das mais antigas) — é uma rua de quem poucos saberão o nome: talvez os seus próprios moradores, talvez o carteiro, se já tiver alguma experiência. E, no entanto, olhamos para ela e sentimos de imediato que é uma rua perdida num qualquer recanto de Portugal. Os muros, as casas, os telhados... Até os carros estacionados e os candeeiros. A rua, já agora, tem como nome «Mouzinho de Albuquerque».
Há muitos outros elementos que não estão nesta foto, mas também ajudam a detectar Portugal numa imagem: os sinais de trânsito, o aspecto das escolas, a maneira de arranjar as bermas, as mesas das esplanadas, a motorizada encostada a um portão — e, claro, o sol mais habitual que por outras paragens, o sabor do vento, o cheiro dos pinhais e tudo aquilo que, de repente, já parece um pouco menos prosaico e talvez um pouco mais digno de ser discutido enquanto elemento de identidade nacional.
Enfim, seja o que for, há quase sempre alguma coisa que nos mostra o país se virmos uma fotografia aleatória de um recanto de Portugal. Os tais jogadores de GeoGuessr simplesmente fazem isso com todos os países do mundo...
O país dos cadernos de encargos
Será que esta impressão indesmentível de estarmos perante uma fotografia de Portugal tem que ver com algum tipo de «alma nacional»?
Não me parece — e fazer este exercício de olhar para uma rua qualquer e ver nela muito de Portugal ajuda-nos a perder ilusões: aquilo que sentimos como sendo português tem que ver com a soma de muitos hábitos, de muitas decisões quase aleatórias. Tem que ver com os hábitos das empresas de construção, com os hábitos das câmaras municipais, com os nossos hábitos, aprendidos entre família, amigos e vizinhos.
Por exemplo: a forma exacta das placas das estradas deve ter sido escolhida há muitos anos através de algum tipo de concurso, em que uma empresa propôs um certo tipo de letra, um certo material ou qualquer outra especificação que permitisse cumprir o caderno de encargos criado pelo obscuro departamento da Administração Pública que trata dessas coisas.
São hábitos e decisões quase inconscientes que acabam por construir, em conjunto, essa sensação de estarmos no nosso país. (Também há diferenças entre as várias regiões, mas o país tem a vantagem de ter uma etiqueta clara.)
A essa sensação acrescentamos conscientemente a História que conhecemos ou imaginamos, a nossa língua (claro está), certas ideias e obsessões. Portugal é isso — mas também as tais pequenas coisas.
Todas essas pequenas coisas são quase invisíveis no dia-a-dia. Só quando saímos e voltamos reparamos em tudo isso que faz parte da imagem que temos do país (e da região) por onde andamos.
Ver o país com o volante ao contrário ainda quente nas mãos
Senti isso de forma muito marcada quando voltei de Inglaterra há uns anos, depois de ter passado alguns dias por lá com um carro nas mãos. A estranheza de conduzir do outro lado da estrada tinha sido intensa — mas a grande surpresa foi ter pegado no meu carro, em Portugal, e ter batido com a mão na porta, à procura das mudanças no meu lado esquerdo. Durante uns segundos, senti estranheza por conduzir como sempre conduzi.
Ora, não é preciso ir a Inglaterra ou conduzir do lado «errado» durante dias. Sempre que entramos em Portugal, na fronteira ou no aeroporto, somos surpreendidos pela estranheza da nossa própria terra.
A sensação dura apenas alguns segundos — e é durante esses segundos que reparamos na maneira como pintamos os prédios, como esperamos na fila do autocarro, como chamamos os táxis, como falamos uns com os outros. Reparamos, enfim, em tudo o que é banal e faz parte de nós.
Tenho para mim que esse é um dos grandes prazeres de viajar: poder ser, durante alguns segundos, estrangeiro na nossa própria terra.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é Português de A a Z.
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