Volto ao meu assunto preferido desta semana que passou, mas de uma forma mais lata. Como já é mais que sabido, um rapazinho, com pinta de liberal, tentou (está a tentar?) fazer uma vaquinha com a contribuição da comunidade, mesmo à socialista, para ir fazer um doutoramento. Pelas aldrabices que contou, mascaradas de criatividade e empreendedorismo, o passe de mágica foi tal, que ficámos a achar que, em vez ir para Cambridge, ele podia era ir para Hogwarts.
Há muitas coisas divertidas nesta história, começando logo pela criatividade apregoada. O António Rolo Duarte afirma que foi muito criativo nesta coisa de pedir às pessoas que lhe paguem um café. Por acaso, é só uma ideia que meio milhão de pessoas no mundo já teve, mas também não vamos agora tentar definir “criatividade”. Depois, o preço de um café. Um euro. O António, se fosse ao Preço Certo, havia de falhar por cima o valor da montra final por, pelo menos, 50.000€. Diverti-me também quando vi que um jovem que quer fazer um doutoramento sobre a identidade nacional, falando apaixonada e pateticamente do pós-imperialismo de Portugal, escreve diversas vezes no seu site “não haverão dois iguais”. Eu não sei se não é demasiado ambicioso ir já para um doutoramento, quando ainda não acabou Língua Portuguesa da quarta classe.
Ah, o site. Estão a imaginar o ego do Mourinho, do Ronaldo, do Kanye West e do Trump juntos? Não é tão grande como o do António. No site detalha o que os contribuintes (nome horrível quando é associado a pagar impostos para o Estado aplicar em coisas como, imagine-se, educação) recebem consoante a sua contribuição. O mínimo que se recebe é uma carta assinada por este prodígio lusitano, ou uma cópia da sua tese de douramento que vai ficar para sempre guardada, tal como refere, ao lado das de alunos como Sir Isaac Newton e Stephen Hawking. Humilde. Mas para contribuições mais generosas, podemos, entre outras maravilhas, ter o privilégio, a honra, a bênção e a alegria divina de o António passar uma tarde a dar orientação profissional aos nossos filhos, ou de nos fazer uma visita guiada por Cambridge. Se isto não se tornou já o sonho da vossa vida, então não sei o que poderá ser. Mas atenção, se contribuirmos com 1.500€, podemos ter a inolvidável concretização do sonho de ir à “verdadeira extravagância aristocrática” que é a festa de Cambridge na qual podemos acompanhar o António.
Além de tudo isto, o mais divertido é que, e já tendo reunido quase 9.000€, o Tó partiu de uma mentira. Partiu de comunicar na sua “criatividade” que as bolsas de doutoramento da FCT estavam suspensas, coisa que rapidamente foi desmascarada.
E é engraçado reparar como se chegou aqui. Como num dos tempos mais estranhos de que os vivos têm memória, o António se lembre disto. Numa altura em que centenas de milhares de pessoas perderam o emprego de um dia para o outro, e tantas delas passaram a precisar de ajuda para comer, numa altura em que empresas esbracejam para sobreviver e serviços públicos como saúde e educação se agarram ao que podem, alguém consiga bater todos os recordes de auto-centrismo para pedir caridade para fazer um doutoramento no pós-imperialismo português. É, de facto, fascinante. Podemos chamar bolha de privilégio, podemos chamar total ausência de consciência do ridículo, e podemos até achar que se trata de um caso de completa ignorância do que é sentir empatia. Mas o melhor que podemos fazer por ele é mesmo um crowdfunding de noção.
P.S.: Quando há dias fiz um post sobre ele, referi que, muito mais importante que ajudar o Rolo Duarte, seria ajudar o senhor António, um senhor que dorme nos bancos de jardim do mesmo bairro que eu e o visado. Recebi mais de 20 mensagens a perguntar como é que podiam ajudar o senhor António, expliquei, e recebi de volta todas as respostas de quem se comprometeu a ajudá-lo. Portanto, tudo isto já serviu para muito mais do que um doutoramento.
Sugestões mais ou menos culturais que, no caso de não valerem a pena, vos permitem vir insultar-me e cobrar-me uma jola:
- Desportos do Mundo: Netflix. Muito interessante, sobre desportos incomuns.
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