O homem que não sabia dançar

Andava eu na quarta classe, na Escola Primária n.º 1 de Peniche, quando fomos todos convidados para fazer parte do coro para uma festa de Natal.

Lá fui eu todo contente! Ia fazer parte dum coro! Ia cantar! Mal sabia eu que não nascera para tais aventuras.

Pois com todos os miúdos à sua frente, o professor encarregado de pôr a petizada a cantar disse-nos para entoar uma canção de cujo nome não me quero lembrar.

Desafinámos as vozes e disparámos. Foi uma cacofonia das antigas. O professor parou de olhos esbugalhados e pediu-nos para repetir, mas agora como deve ser.

Acertámos, aos poucos, as vozes. Enfim, a primeira pessoa do plural talvez seja um abuso. Na verdade, os meus colegas acertaram as vozes. Já eu...

O professor mandou o coro parar. Apontou então para mim e disse: «Tens de sair!». Disse-me para ficar a ouvir e, quando achasse que já sabia a canção, podia então voltar.

Cinco minutos depois, pus o dedo no ar. Já sei! Pus-me de novo no coro e cantei. Ou melhor, «cantei». As aspas na palavra não se notavam no meio da cantoria dos meus colegas, mas o professor tinha bom ouvido. Com um gesto imperativo pediu para que todos parassem de novo, apontou para mim e disparou: «Tu, sai!»

Saí, triste. Talvez a crueldade do episódio já esteja um pouco exagerada pela sempre traiçoeira memória. Mas o certo é que nunca mais me atrevi a cantar em público — o que, sei agora, é uma decisão muito razoável da minha parte, prova de respeito pelos ouvidos do dito público.

Ah, depois veio a dança. Nas festas e discotecas da minha adolescência, os meus colegas passavam por várias fases na sua aceitação da minha incapacidade de dançar. Aliás, passavam por duas fases apenas: a fase «Ele está a brincar?» e a fase «Não, ele está mesmo a tentar dançar. Que horror!». Enfim, depressa adoptei a famosa técnica de abanar um pouco o corpo e fazer cara de «se eu quisesse, dançava; mas não quero». Nunca enganei ninguém. No casamento, com esforço, imitei os movimentos de um ser humano com capacidade de dançar durante alguns segundos. Depois, recuperei o chumbo nos pés.

Há quem não goste de música?

Tenho pés de chumbo e falta-me um pouco de ouvido para cantar ou tocar. Ah, mas tenho de admitir: a música faz parte da minha vida como poucas coisas — e, nisto, não sou diferente de todas as outras pessoas.

A música difere de cultura para cultura; os gostos mudam como sabemos. E, no entanto, a música é universal. É um pouco como a linguagem: haverá maior marca das diferenças entre seres humanos do que as línguas, na sua imensa variedade nacional, social e regional? Apesar disso, a linguagem é um dos universais culturais do mundo: não há cultura que não tenha uma ou mais línguas.

O que mais nos divide é também o que é universal. Ah, mas a ligação entre música e língua é, quanto a mim, mais profunda: pois a boa literatura faz-se de língua, mas também de música, aquele ritmo e aquela melodia difícil de descrever, mas que ouvimos sempre que sentimos uma boa história a rebolar na língua. E, claro, a música tem muito de poesia ali pelo meio, nas letras que decoramos.

Pois bem: não há cultura sem música — e, arrisco dizer, será difícil encontrar no mundo inteiro uma só pessoa que afirme não gostar de música. As melodias mudam, os gostos são mais simples ou mais complexos, mas todos batemos o pé quando ouvimos um ritmo, todos sentimos o coração a bater mais forte nos primeiros acordes daquela música — e arrisco dizer que todos temos alguns momentos de felicidade ligados a uma canção em particular. Anos depois dos melhores anos, do que é que nos lembramos? Daquele beijo ou daquela conversa, sim, mas também daquele concerto. E quem diz que é impossível viajar no tempo nunca se lembrou da maneira como uma canção nos consegue transportar para outras épocas. Basta ouvir as primeiras notas duma música que ouvíamos há 20 anos para essas duas décadas se esfumarem e parecer que estamos, de novo, a entrar na faculdade, ao sol, a falar pela primeira vez com aqueles que viriam a ser os grandes amigos, os grandes inimigos e os grandes amores da nossa vida.

A música nos pés dos meus filhos

Quando nasceu o meu primeiro filho — o Simão —, fiquei com medo: e se ele cantar tão mal como eu? E se ele vier com chumbo nos pés? Não vinha. Aí por volta dos três anos, já cantava e dançava sem vergonha.

Depois, faz amanhã um ano, nasceu o Matias, o segundo filho. Mais uma vez, o medo que sempre temos: e se tiver herdado os meus defeitos? E se vier com madeira nos ouvidos e pedras nos pés?

O Matias, nestes doze meses que já leva, provou que não: é um espanto ver um bebé de poucos meses a abanar-se todo ao som de certas músicas —já dança bem melhor que eu, quando ainda nem sabe andar (não estou a exagerar).

Felizmente os meus filhos, nesse ponto, são bem mais parecidos com a mãe, que canta tão bem quanto eu canto mal (o que é um tremendo elogio, vão por mim). Já têm os seus gostos. Já cantam. Já sentem o sangue a ganhar o ritmo da música. Já sabem como é saboroso ouvir certas canções. Como a música nos acerta os dias sem que consigamos explicar o porquê ou o como. Talvez até já saibam como a música explica coisas que não conseguimos dizer em nenhuma língua do mundo.

Bem, todo este texto sobre velhos traumas de infância (já os superei: agora só penso nisso umas três vezes por dia) e o valor da música (haverá algo mais óbvio?) serviu apenas para, agora, dizer isto: quando uma criança começa a dançar e a sorrir, sabemos que está mesmo ali alguém que pensa e sente o mundo como nós, com um corpo onde há fome, sede e choro, mas onde também há ritmo e vontade de cantar.

Sim, tive aquele trauma que descrevi. Deixei de ter vontade de cantar ou dançar, o que é — convenhamos — uma considerável limitação. Mas não há melhor para nos obrigar a perder as manias do que ter filhos. Hoje, danço e canto, mal ou bem (ou seja, mal), para acompanhar os meus filhos quando os vou pôr à escola ou quando estamos em casa e começa uma das músicas de que gostam. Para eles, canto bem. E, assim, a cantar as letras erradas das músicas que ouvimos, a dançar sem regra e para ninguém, somos felizes.

Marco Neves | Tradutor, professor e autor. Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras. O seu livro mais recente é o Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.