Eu vivi e cresci a imensos metros do local onde o João Miguel Tavares nasceu, ali, no cruzamento da Avenida do Brasil com a Avenida de Roma. Foi nessa casa que habitei até fazer aquilo que a maior parte dos lisboetas faz após acabar o secundário: fazer bullying a portalegrenses por não fazerem parte da bolha privilegiada de Lisboa. Boa parte dos lisboetas, infelizmente, já não o faz com tanto afinco. Mas aquela será sempre a minha bolha. E esta foi, é e será sempre a minha cidade.

Tenho a honra de ser o primeiro filho da democracia a presidir às comemorações do discurso de João Miguel Tavares no 10 de Junho. Não sei o que é viver sem liberdade. Também me recordo pouco do que é viver sem João Miguel Tavares.

Portugal permitiu que um simples estudante de uma cidade do interior, sem qualquer ligação à capital e às suas elites, fosse subindo aos poucos na vida e chegasse até aqui. Sendo que o “aqui” são as elites. Portanto, não as combatam. Juntem-se a elas. Até porque a elite é melhor. Daí chamar-se elite. Não vamos ser preconceituosos com ela.

O meu crescimento acompanhou o crescimento da democracia portuguesa.

Vi o quanto o país mudou.

Até ao final da década de 90, Lisboa estava a mais de quatro horas de autocarro de Portalegre, o que era perfeito. Hoje, o João Miguel Tavares tem de visitar familiares todos os meses, porque com a autoestrada não tem desculpa.

Mas o país progredia, e eu via-o progredir. Os meus pais estudaram mais anos e tiveram mais oportunidades do que os meus avós. Eu estudei mais anos e tive mais oportunidades do que os meus pais. Os meus filhos em princípio não vão ter mais oportunidades porque alguém rebentou com este esquema aqui pelo meio.

Como acontecia em tantas casas, a família do JMT investia parte do salário a comprar livros e enciclopédias que chegavam pelo correio, a prestações. Sim, sim. Foi o Planeta de Agostini que lhe deu a cultura necessária para perceber 10% do que o Pedro Mexia diz.

Os pais lutavam por isso – lutavam menos por eles, do que pelas suas crianças, para que elas tivessem uma vida melhor, estudassem, fossem “alguém”. Os seus filhos chegariam às universidades. Estudariam dezasseis, dezassete, vinte anos, se fosse preciso. Viajariam mais. As suas férias não estariam limitadas aos 15 dias em Albufeira. Que, vendo bem, é bem bom. A maior parte estaria limitada aos 8 dias no parque de campismo da Costa da Caparica. Mas os seus filhos seriam grandes. Seriam felizes. Seriam europeus. Iriam para a cama com uma sueca. E uma húngara. E uma checa. E uma eslovena. E um arménio.

A geração dos pais de JMT sacrificou-se para que os filhos tivessem o que eles nunca tiveram. Mas é possível que eles tenham tido aquilo que mais nos tem faltado nos últimos vinte anos: um objetivo claro para as suas vidas e um caminho para trilhar na sociedade portuguesa. Ou emprego estável. Talvez fosse um emprego estável.

Os portugueses lutaram pela liberdade em 1974. Lutaram pela democracia em 1975. Lutaram pela integração na Comunidade Europeia nos anos 80. Lutaram pela entrada na moeda única durante a década de 90. Lutaram pela perda da titularidade do Fernando Couto na seleção nos anos 00.

Não é fácil saber porque é que estamos a lutar hoje em dia. A não ser, claro, que se pesquise. Mas não me apetece.

É nessa dificuldade que repousam tantas das nossas angústias. Não me apetecer pesquisar.

As pessoas de hoje não são diferentes das de ontem: enquanto indivíduos, continuamos a amar, a sofrer, a chorar, a rir, hoje como sempre. Boa parte de nós, talvez julgue mesmo que a política é somente um cenário longínquo, distante da vida que nos importa, que é aquela que está mais próxima de nós. Daí o chamado “desinteresse pela política”.

O sonho de amanhã ser-se mais do que se é hoje vai-se desvanecendo, porque cada família, cada pai, cada adolescente, convence-se de que o jogo está viciado. Que não é pelo talento e pelo trabalho que se ascende na vida. Que o mérito não chega. Que é preciso conhecer as pessoas certas. Que é preciso ter os amigos certos. Que é preciso nascer na família certa.

Quando JMT diz à Carolina, ao Tomás, ao Gui ou à Rita – os quatro filhos de João Miguel Tavares – “leiam mais, trabalhem mais, que o vosso esforço será recompensado” – será que lhes está a dizer a verdade? Não, porque nasceram na família certa. Deixem-se estar mas é quietos que a infância é para brincar.

Os meus pais disseram-me isso a mim. E eu estou aqui. Ganda patrão. A fazer um discurso. Porra. Campeão, ou não? Mas será que a mesa está equilibrada e o elevador social funciona hoje da mesma forma? Ou a vida estará bem mais difícil para um jovem na casa dos vinte anos, que numa economia de baixo crescimento tem de competir com uma geração mais velha já licenciada, integrada num mercado de trabalho rígido, que confere muita proteção a quem tem um lugar no quadro e muito pouca proteção a quem não o tem? E que, para além disso, nem sequer faz amor com outras pessoas? Pois.

Há o “eles” – os políticos, as instituições, as várias autoridades, muitas das quais (receio bem) se encontram hoje aqui presentes. E há o “nós” – eu, a minha família, os meus colegas, os meus amigos. E as “gajas”. Também há as “gajas”.

Entre o “nós” e o “eles” há uma distância atlântica, com raríssimas pontes pelo meio. E depois metem-se as “gajas”.

“Eles” não têm nada a ver connosco. “Nós” não temos nada a ver com eles. As “gajas” é que lixam tudo.

O senhor Presidente da República costuma dizer com frequência que os portugueses, quando querem, são os melhores do mundo. Mas o senhor Presidente da República por vezes é chalupa. Não há qualquer razão para os portugueses serem melhores do que os finlandeses, os nepaleses ou os quenianos. Somos objetivamente piores do que os quenianos no que toca a correr.

Mas tenho uma boa notícia para dar: também não precisamos de ser melhores.

Quando o senhor Presidente da República me convidou para presidir a estas cerimónias houve muita gente que ficou espantada, incluindo eu próprio. Mas com o tempo fui-me afeiçoando à ideia de que talvez não seja absolutamente necessário ter méritos extraordinários para estar aqui, e que Portugal precisa cada vez mais de um 10 de Junho feito de pessoas comuns e para pessoas comuns. Aliás, para o ano já está combinado. Vem aí discursar durante 20 minutos o meu jardineiro.

Portugal somos nós. Sou eu. É o Sócrates. São as pessoas que estão sentadas em lugares privilegiados nestas bancadas. São os militares que desfilam à nossa frente. São os portalegrenses debaixo do sol de junho. São as pessoas lá em casa, a ouvir estas palavras e a criticar no Twitter.

Todos temos nas nossas famílias histórias destas, de gente banal envolvida em feitos extraordinários.

Nós precisamos de sentir que contamos para alguma coisa. (Além de pagar impostos. Que, aliás, são uma estupidez e em nada contribuem para a igualdade de oportunidades)

Cada português precisa de sentir que conta, precisa de sentir que os seus gestos não contribuem apenas para a sua felicidade individual, ou para a felicidade da sua família, mas que têm um efeito real na sociedade, e podem, à sua medida, servir o país.

É preciso dizer ao velho que perdeu tudo nos incêndios de Pedrógão – tu contas.

É preciso dizer ao miúdo que habita na pobreza do Bairro da Jamaica – tu contas.

É preciso dizer ao jovem que foi burlado em milhares de euros pela Maria Leal – tu não sabes fazer contas.

E se alguma pessoa emproada vos perguntar pelo vosso currículo, digam-lhe que currículo tem tanto o académico que decide dedicar a sua vida ao estudo como o pai que decide dedicar a sua vida aos filhos. E depois deem-lhe o vosso currículo, porque pode ser uma boa oportunidade de emprego. Não sejam burros.

Currículo tem tanto o cientista que dedica o seu tempo à investigação como o reformado ou o jovem que dedicam o seu tempo a ajudar os outros.

São diferentes tipos de currículo, mas são currículo. Disse isto sem me rir? Avancemos.

E se ainda assim vos perguntarem “quem é que tu achas que és?”, respondam apenas: “Sou um cidadão que todos os dias faz a sua parte para que possamos viver num Portugal melhor e mais justo.” E depois, rotativo nos dentes, porque quem pergunta isso só pode querer andar à mocada.

Isso chega – aliás, não só chega, como é aquilo que mais falta nos faz. Mais rotativos nos dentes.

Muito obrigado.

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Este livro.