Primeiro, veja-se a história da nomeação de Clarence Thomas. Quando a escolha do Presidente George H. W: Bush para o nomear juiz do Supremo Tribunal foi conhecida, uma advogada e professora universitária, Anita Hill, declarou que ele a tinha assediado sexualmente. Hill tinha quatro testemunhas que a Comissão de Justiça se recusou a ouvir e um relatório do FBI que foi ignorado, assim como um exame poligráfico que confirmou serem as suas declarações verdadeiras. A Comissão, constituída só por homens, tratou-a com um certo desdém e confirmou Thomas.
Agora, o que aconteceu neste caso. Tal como com Thomas, as audiências da Comissão (que agora tem quatro mulheres entre os 21 membros, 11 republicanos e dez democratas) decorreram normalmente desde que Trump propôs Kavanaugh, em 18 de Junho, sem que se encontrassem problemas na sua biografia. Até que, à última hora, uma psicóloga e professora universitária, Christine Blasey Ford, veio publicamente declarar que tinha sido atacada sexualmente pelo candidato em 1983, quando ela tinha 15 anos e ele 17.
Tal como anteriormente, a Comissão, com maioria republicana, recusou uma investigação do FBI e a audição de testemunhas, limitando-se a marcar uma entrevista com Ford – que também passou num teste de polígrafo. O seu psicólogo tem notas com comentários dela sobre o assunto datados de 2012.
Já não estamos em 1991; não só a Comissão tem mulheres, como também ocorreu o Movimento #MeToo e mudou muito a opinião pública em relação ao assédio sexual.
Mas a questão mais importante tem a ver com a urgência dos republicanos em que seja nomeado um juiz declaradamente conservador antes das eleições intercalares de Novembro, pois podem perder a maioria no Congresso (tanto no Senado como na Câmara dos Representantes). Há décadas que as forças mais conservadoras ambicionam conseguir um Supremo Tribunal com maioria a seu favor para reverter muitas decisões liberais, como a Interrupção Voluntária da Gravidez e o casamento de pessoas do mesmo sexo, além de uma miríade de outros avanços sociais que os fundamentalistas religiosos nunca aceitaram. O Presidente Obama nomeou dois juízes liberais, Sónia Sotomayor e Elena Kagan, mas os republicanos simplesmente recusaram-se a considerar um terceiro candidato que ele tinha oportunidade de escolher, Merrick Garland, alegando que só faltavam seis meses para as eleições presidenciais de 2016.
Trump já teve a oportunidade de nomear um juiz conservador, Neil Gorsuch, de 51 anos. A idade é importante, porque os membros do Supremo servem até à morte (ou até se reformarem por vontade própria) e portanto os efeitos das nomeações prolongam-se muito para além do mandato dos presidentes. Kavanaugh tem 53 anos, o que significa que a composição do Tribunal ficaria com uma maioria conservadora por uns 20-30 anos.
Depois de Ford ter vindo a público, duas outras mulheres, Debbie Ramirez e Julie Swetnick, também afirmaram terem sido agredidas sexualmente por Kavanaugh. Nas investigações desenterradas pela comunicação social veio a lume a imagem dum adolescente propenso a beber de mais e a incomodar as colegas de escola, tanto no liceu como na universidade. Uma situação bastante reveladora do seu carácter, ignorada pela Comissão, refere-se ao facto de no livro de curso Kavanaugh e 12 outros colegas fazerem referências pouco elegantes em relação a uma Renate Schroeder, que teria tido relações com todos. Um deles foi ao ponto de incluir no livro um verso: “Se queres um encontro/e já está a ficar tarde/não hesites/chama a Renate.”
Evidentemente que o que mais preocupa os liberais é a possibilidade de Kavanaugh votar mudanças legislativas que invertam as leis da IVG e dos direitos LGBT e prejudiquem os emigrantes; mas nesses pontos o candidato tem tido o cuidado de não se comprometer. Mas a sua vida desregrada na juventude, se provada, seria uma razão concreta e suficiente para não o aprovar. Do outro lado da barricada, os republicanos, que já têm tendência para considerar que o comportamento de adolescentes masculinos é um facto cultural irrelevante, estão decididos a eliminar as tendências liberais do Supremo antes que percam a maioria. Portanto, é importante ter em conta que o mais importante é que Kavanaugh seja nomeado antes de Novembro, sem que investigações mais pormenorizadas ao seu comportamento adolescente atrasem os procedimentos.
Quinta-feira deu-se a confrontação entre Kavanaugh e Ford, em sessões contínuas (ou seja, os dois nunca estiveram frente a frente). A professora prestou um depoimento pungente e sincero, que impressionou toda a gente. Afirmou claramente que tem 100% de certeza do que Kavanaugh a atacou e mostrou credivelmente que não tem motivações políticas; decidiu vir a público porque acha que um homem com o carácter dele não pode ser juiz do Supremo Tribunal.
A seguir falou Kavanaugh. Foi agressivo, dizendo-se insultado pelas acusações, e seguiu a teoria defendida por Trump e pelos republicanos de que Ford foi usada pelos democratas para o liquidar. Chegou mesmo a dizer que se tratava de uma vingança dos Clinton por terem perdido as eleições — ilação difícil de estabelecer, uma vez que Ford nunca teve qualquer contacto com eles.
É a palavra dela contra a palavra dele?
Depois das declarações, seguidas ao vivo pelo país inteiro, os republicanos, sempre repetindo que sentiam muito pela provação de Ford, obrigada a contar o que passou em rede nacional, recusaram-se contudo a aceitar a sua versão, ou a permitir uma investigação. Assim, como está, é a palavra dela contra a palavra dele. Não podendo afirmar que ela mentiu (há os eleitores femininos a ter em conta...) mas também não podendo admitir que o mentiroso é ele, os republicanos desviaram a questão para outro ponto: a culpa desta situação constrangedora é de Dianne Feinstein, a senadora democrata que recebeu a carta de Ford a contar tudo em Julho, mas só a revelou à Comissão em Setembro, já em cima da hora da votação e sem tempo para uma investigação mais profunda. Feinstein contrapõe que não mostrou a carta antes porque Ford lhe tinha pedido sigilo; inicialmente não queria vir a público e só mudou de ideias em Setembro, ao ver que a escolha de Kavanaugh era inevitável.
Evidentemente que esta situação podia ser resolvida atrasando a votação até que o FBI investigue e testemunhas sejam ouvidas, mas é esse atraso que não pode ser aceite pelos republicanos, pois as investigações poderiam levar semanas. A principal testemunha, Mark Judge, que estava presente no quarto quando Ford foi atacada, escondeu-se em parte incerta e enviou uma carta, através do seu advogado, a dizer que uma vida de alcoolismo e um cancro o fragilizaram e não deseja falar no assunto. Mas a Comissão tem poderes para o fazer depor sob juramento – se quisesse.
De quinta para sexta, a Ordem dos Advogados (American Bar Association) veio a público defender que se faça uma investigação aprofundada: “Uma escolha para o nosso tribunal mais superior é simplesmente importante de mais para que se apresse a votação. A decisão de prosseguir (com a votação) sem investigações adicionais tem um impacto negativo duradouro não só na reputação do Senado, como também afecta negativamente a grande confiança que o povo americano deve ter no seu Supremo Tribunal.”
Entretanto, soube-se que o ex-presidente George W. Bush tem estado a tentar convencer os senadores que estão hesitantes e desconfiam do endosso de Donald Trump.
Finalmente, sexta feira a Comissão ia votar. Às 10 da manhã. Os senadores apresentaram as suas razões durante horas. Resumindo todas as declarações, há os que dizem que acreditam em Ford, e os que dizem que acreditam, mas que ela está enganada quanto ao perpetrador. Depois de muito drama e ranger de dentes, finalmente o senador Jeff Flake, republicano, propôs um adiamento da decisão por uma semana, para que o FBI possa investigar as alegações contra Kavanaugh. Uma vitória do bom senso.
A investigação terá de ser ordenada pelo Presidente Trump, e é pouco provável que ele não dê a ordem — embora com Trump nunca se saiba.
Em última análise, o que aqui está em jogo não é o comportamento ou o carácter de Kavanaugh; o que está em jogo — tanto para democratas como para republicanos — é as decisões que ele tomará como juiz do Supremo Tribunal.
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