Pediram-me para vos dizer o que teria feito de diferente no tratamento económico da pandemia de covid-19 em Portugal. Alinharei algumas reflexões breves, não de análise da situação, mas de comentário às medidas tomadas para as abordar.

1- A infeção económica

Antes de mais é preciso dizer que, perante um choque tão súbito, inesperado e devastador, qualquer consideração sobre a sua gestão tem de partir do enorme respeito que merecem todos os que se encontram em posições de liderança em condições tão difíceis. Ninguém queria estar nessa situação; aqueles que estiveram merecem grande consideração e louvor pelo seu serviço público. Fazer críticas é fácil; difícil é decidir bem debaixo de uma pressão tão dramática.

A segunda consideração é que, ao contrário do que se passa com o vírus, o tratamento desta doença económica é fácil de definir e descrever. Na economia o efeito foi demolidor, com Portugal e o mundo a enfrentarem uma crise nunca vista desde 1945. Perante o medo de contágio e as medidas de confinamento, os mercados fecham. Sendo a queda da procura muito superior às limitações da produção, a sociedade enfrenta uma clássica situação de depressão. Se não forem tomadas medidas rápidas, pode iniciar-se uma espiral depressiva, com sucessivas vagas de falências. A solução não é fácil de implementar, mas simples de descrever; pelo menos desde os trabalhos de J. M. Keynes que sabemos a cura para esta maleita: o Estado deve suportar rendimentos e empresas, por meio de subvenções, moratórias e outros apoios.

A receita é conhecida e os tratamentos seguiram a via indicada. A generalidade dos países desenvolvidos implementaram programas de despesa pública e cortes fiscais, como deviam. Assim, em terceiro lugar, é preciso afirmar que a linha geral da política económica seguida em Portugal nos últimos meses está certa. As críticas que se seguem serão de pormenor, não de fundo.

2- O lado económico da questão sanitária

A vertente de saúde merece atenção, pois é determinante para tudo o resto. Aqui houve evidentes problemas no funcionamento dos serviços, não tanto no embate inicial, mas nas vagas posteriores, o que pode parecer paradoxal. Perante a surpresa, os sistemas aguentaram; aquilo que falhou foi a angariação e preparação dos recursos para o que se sabia vir mais tarde. Seguindo o traço clássico da cultura lusitana, funcionou muito bem a improvisação e muito mal o subsequente planeamento.

Relacionado com esta falha de antevisão, num aspeto que gerou graves consequências económicas, está a incapacidade de, ao contrário do afirmado, praticar um confinamento inteligente. No espanto inicial, a única hipótese era fechar tudo; nas fases seguintes, porém, pretendia-se uma abordagem mais sofisticada. No entanto, centrando os recursos no tratamento, foi claramente descurado o investimento em estudos e análises das linhas epidemiológicas. Deste modo, na segunda e terceira vagas foi necessário retomar as medidas genéricas, drásticas e brutais do embate inicial, devastando mais uma vez a atividade económica, por ser impossível saber como e onde se podia ser seletivo e criterioso nas medidas de contenção.

Neste campo, jogaram também decisivamente duas opções ideológicas de fundo do Governo, que realmente se mostraram muito nocivas. Primeiro, a sucessiva descapitalização dos serviços de saúde ao longo dos últimos anos, sacrificados a um objetivo de rápido equilíbrio orçamental que, rendendo evidentes dividendos políticos, era desde o princípio inevitavelmente insustentável. Em segundo lugar, o propósito, assumido à partida, de garantir o tratamento da doença contando apenas com os recursos públicos, segundo o princípio da universalidade. O Estado não quis ser subsidiário da capacidade da sociedade, mas totalitário nos tratamentos. Esta atitude, que acabou por ter de ser revertida perante a inelutabilidade da doença, revelou uma grande falta de realismo, criando elevados custos para as populações.

3- O apoio à economia

Já se disse que, em geral, as medidas de apoio à economia foram no sentido adequado, além de terem começado cedo e com vigor. As críticas que se seguem não negam este acordo básico.

A opção de fundo da política portuguesa, como aliás na Europa, foi apoiar empresas e empregos, não tanto as pessoas. Na linha do tradicional mecanismo alemão do kurzarbeit – que em inglês se chama furlough, e por cá inexplicavelmente foi intitulado variadamente de lay off, lay-off e layoff (palavra que em inglês significa despedimento) – o Estado paga parte do salário dos trabalhadores desocupados, mantendo os postos de trabalho e isolando o mercado de trabalho do esmagador choque produtivo. Esta opção contrasta com a linha seguida nos Estados Unidos, onde o apoio foi dado diretamente ao rendimento das famílias, permitindo falências e desemprego.

A escolha entre as duas orientações é complexa e discutível, com vantagens e inconvenientes de ambos os lados. Cá, a que foi tomada funcionou como previsto. Mas aquilo que é evidentemente errado é, optando por uma delas, esquecer a correção dos seus defeitos. Isso aconteceu evidentemente em Portugal, sobretudo com a incúria perante os mais pobres, mendigos, sem-abrigo, vendedores ambulantes, sem salário para ser compensado. Estes, que estiveram entre os mais atingidos, estiveram também entre os menos apoiados nesta crise, precisamente devido à sua informalidade ou, talvez, à irrelevância eleitoral e mediática. De facto, no meio da profusão de pequenas medidas sucessivamente anunciadas, num traço a que o Governo tem habituado os cidadãos, é difícil encontrar programas dirigidos aos mais necessitados e às organizações que os apoiam. Isso teve de ficar a cargo de beneméritos e paróquias, enquanto as autoridades dedicaram a sua atenção a outros lados. Os dados ainda não estão disponíveis, mas são vários os indicadores que revelam a pobreza em Portugal a crescer bastante em 2020, enquanto desceu significativamente nos EUA em consequência dos apoios covid.

Um segundo problema que as medidas tiveram foi a sua reduzida dimensão. Portugal esteve entre os mais parcimoniosos dentro da União Europeia, e os mais inclinados a usar medidas sem impacto direto no orçamento. Este facto pode encontrar justificação na cautela devida ao desequilíbrio crónico das nossas finanças, ainda visível na dimensão da dívida. Mas claramente que esta terrível emergência não era o momento para tais cautelas. Aliás, mesmo se a única preocupação for orçamental, uma devastação no nosso aparelho produtivo eliminará muitos dos futuros contribuintes. Por outro lado, o ainda recente sucesso do equilíbrio das contas públicas, que o Governo tanto apregoou, parece ter agora pesado menos como folga para gastar nesta ocorrência e mais como relutância em estragar a brilharete anterior.

Em terceiro lugar, em vez de um confinamento inteligente, que se pretendia obter, mas realmente nunca chegou, tivemos algumas restrições bem pouco inteligentes. Em certos casos houve mesmo proibições ao lado de qualquer justificação sanitária. O Ministro da Educação impediu o uso de ensino remoto em escolas que o podiam utilizar, para depois vir a negar que o fizera. Algumas lojas foram permitidas funcionar durante o confinamento, mas proibidas de vender produtos que antes vendiam, porque existem nas lojas obrigadas a encerrar. Aos restaurantes e cafés foi permitido vender comidas, mas não bebidas, nem sequer água. Nestes e outros casos, o vírus em causa era mental e não gripal.

Finalmente, as medidas falharam devido à inevitável burocracia. Perante um choque súbito e devastador, a intervenção só pode ser igualmente rápida e decidida. Prometer ou entregar apoios quando o confinamento acabou, pode ser agradável, mas já nada tem a ver com a depressão. Nesses casos a situação é comparável a um incêndio onde os bombeiros decidem usar baldes em vez de mangueiras e devido ao custo da água, examinam cuidadosamente quem recebe qual balde. No final, os funcionários que controlam esses registos serão louvados pela dedicação e esforço, mas a casa arderá completamente.

A situação em Portugal alinha bastante com esta alegoria. Grande parte dos programas implicou registos, licenciamentos e autorizações que, por muito rápidas que fossem, prejudicam gravemente a celeridade e eficácia da intervenção. Muitas das medidas foram concebidas para persistirem dois ou três meses, quando ainda ninguém sabia a duração do choque; depois eram renovadas, mas exigindo novas candidaturas. Houve até casos, mais tarde corrigidos, em que a autorização dependia de uma situação fiscal regularizada, o que equivale a vingança cruel e rancorosa. No programa de layoff, por exemplo, os pagamentos aos trabalhadores são feitos pela empresa, a partir de receitas que não tem, sendo esta indemnizada meses mais tarde. É evidente que muita da terapêutica virá quando a doença já passou.

4- A intervenção europeia

O caso mais flagrante de ajuda maciça, generosa mas gravemente desajustada cabe à União Europeia. Depois de hesitações iniciais, que levaram a uma recusa de intervenção em março, o Conselho Europeu veio a tomar decisões de uma dimensão inesperada e inaudita, aprovando o programa SURE (Support to mitigate Unemployment Risks in an Emergency) a 19 de maio e, sobretudo, o gigantesco novo fundo Next Generation EU a 21 de julho.

Os montantes são astronómicos e a forma de financiamento inovadora, criando novos títulos de dívida em nome da Europa, algo que andava a ser debatido há bastante tempo sem sucesso. Esse é um avanço histórico, mas realmente não tem nada a ver com a pandemia. Praticamente não houve verdadeiros desembolsos em 2020 e, na sua esmagadora maioria, só aparecerão tarde em 2021 e 2022, quando tudo tiver acabado. Aliás, assumidamente, a quase totalidade deste exercício dirige-se, não à crise, mas àquilo que se decidiu chamar «recuperação e resiliência».

A generalidade das autoridades e comentadores fingem esquecer que, num caso como este, a recuperação da economia acontece automaticamente assim que o vírus desaparecer. Não tendo existido nenhuma destruição de valor, alteração de processos produtivos ou ausência de recursos, as empresas e os trabalhadores podem simplesmente retomar os seus lugares. Toda a crise é causada pela impossibilidade em estabelecer interações no mercado. Logo que estas forem reestabelecidas, tudo regressa ao normal.

É verdade que persistem fortes cicatrizes geradas pela colossal devastação, na forma de elevadas dívidas, falências, deslocação de trabalhadores. Isso tem de ser tratado, mas o tratamento é moroso e implica recursos entregues a privados, não gerando grande prestígio ou dividendos políticos. É muito mais conveniente gastar dinheiro em velhos sonhos e projetos, da digitalização à descarbonização, que, sendo muito meritórios, nada têm a ver com a retoma após a devastação do SARS-Cov 2.

Em vários países, incluindo Portugal, o cenário pós-pandemia, para o bem e para o mal, vai ser dominado pela influência desta chamada «bazuca europeia». Voltaremos aos anúncios, promessas, investimento e inaugurações de há 30 anos. E também ao compadrio, atrasos, corrupções, aproveitamentos e distorções que conhecemos bem. Uma coisa é certa: o vírus está totalmente inocente de tudo isso, que se deve exclusivamente às medidas tomadas para tratar a pandemia covid-19.