É extraordinário que eleições num país tenham consequências em todos os outros países do mundo; que uma sociedade tecnologicamente avançada tenha um processo democrático minado por inconsistências; e que uma democracia que se pretende uma bandeira para todas as outras seja tão pouco transparente e equitativa.

Mas é o que temos, como se diz em Portugal, onde o processo eleitoral é muito mais são e escorreito, passe a sua importância zero no cenário internacional. Resta-nos seguir com o coração nas mãos uma competição de importância vital em que nem sequer participamos.

A situação é mundialmente relevante por uma miríade de razões. 

Primeiro, os resultados de 8 de Novembro vão determinar, indirectamente, situações internacionais como a guerra (na Ucrânia e não só), a fome em África, a igualdade de género um pouco por toda a parte, a inflação e o nível de vida nas duzentas economias conhecidas e a fé no sistema representativo onde ele é reconhecido como o melhor.

Tanto os países que odeiam tudo o que é norte-americano, como aqueles que dependem dos Estados Unidos para sobreviver, seguem com ansiedade uma competição que, em última análise, depende de uma nação dividida por fracturas inexoráveis, com votantes cuja ignorância e motivações são maioritariamente arrepiantes.

Segundo, esses resultados terão consequências não só imediatas, mas também futuras. No imediato, uma série de direitos básicos, como as igualdades racial e de género, desaparecem do horizonte nacional; no futuro, isto é, em 2024, há a hipótese real de que Donald Trump, uma espécie de Mefistófeles inserido no bem estar colectivo, volte ao Poder com uma vingança apocalíptica.

Os Estados Unidos serão ainda menos uma democracia plena e as autocracias (ditaduras, realmente) distantes ganharão um poder fatal nos conflitos entre as nações. Não é preciso ser vidente para saber o que acontecerá com a expansão militar da Federação Russa, com os conflitos no Médio Oriente, com a luta climática por toda a parte, com a fome em África, com o preço da energia e, até com a especulação imobiliária em Lisboa (somos paroquiais, sim senhor) se Trump voltar à Casa Branca. Como se costuma dizer, isto está tudo ligado. A teoria filosófica do bater de asas da borboleta, que provoca um terramoto do outro lado do planeta, é verdadeira, sim senhor.

Postas estas desagradáveis considerações, vamos ao âmago da questão.

No Brasil, um país que muitos consideram subdesenvolvido, imaturo, corrupto, violento e pouco confiável em vários sentidos, o resultado das eleições é sabido no momento em que as urnas electrónicas encerram.

Nos Estados Unidos, que até os inimigos reconhecem ser “uma democracia consolidada” (mesmo quando “democracia” é um palavrão), tecnologicamente avançada, pragmaticamente eficiente e com estruturas desenvolvidas, o resultado das eleições leva dias, até mesmo meses, para ser encerrado. Competições muito apertadas e o voto pelo correio atrasam os resultados, que serão certamente ainda prorrogados por incontáveis reclamações, processos judiciais e recontagens de votos. O Partido Republicano já determinou que, onde perder, as eleições são fraudulentas. Determinou-o, disse-o publicamente e vai proceder de acordo. 

O ataque ao Capitólio em 6 de Janeiro, um evento que só não é comparável à tomada do Palácio de Inverno pelos bolchevistas, em 1917, porque falhou, continua objecto de um interminável inquérito por uma Comissão Especial do Senado que, segundo os republicanos, é uma “caça às bruxas”.

(Vasco Rato, ex-presidente da Fundação Luso-Americana, repetiu na semana passada no “Expresso da Meia Noite”, que o que se viu naquele dia na televisão não é o que aconteceu, e ainda não foi objecto de um “inquérito imparcial”, embora a Comissão do Senado  já tenha levantado provas indiscutíveis e muitos dos revoltosos tenham sido condenados em juízo. Centenas de comentadores norte-americanos, como o televisivo da Fox, Tucker Carlson, o radialista da InforWars, Alex Jones e o profeta do apocalipse, Steve Bannon continuam a dizer o mesmo.)

Mais surreal ainda (haverá “mais” surreal do que o irreal?), mais de 370 republicanos candidatos a cargos públicos negam o resultado das eleições de 2020.

Neste momento em que escrevo — manhã de sexta-feira, 11 de Novembro — alguns resultados ainda não estão totalizados, mas já há algumas certezas. Assim, na Câmara dos Representantes, cuja maioria exige 219 votos, os republicanos têm 211 lugares e fortes probabilidades de chegarem aos 222; os democratas têm 194 votos e talvez cheguem aos 213, segundo as contas do "The New York Times". Portanto, os republicanos voltam a dominar a câmara baixa, o que significa que Biden terá enormes dificuldades em passar legislação.

No Senado, neste mesmo momento, os republicanos têm 49 lugares e os democratas 48. Contudo, há três lugares por decidir. Em dois deles, Nevada e Arizona, é certo que ganha um republicano e um democrata. Mas há um terceiro, a Geórgia, que terá de passar por uma segunda volta. Portanto, não se sabe o resultado final. Se houver um empate (50 democratas, 50 republicanos), que é a situação actual, ganham os democratas, uma vez que o voto de desempate pertence à Vice-Presidente Kamala Harris. 

Um cargo “menor” mas de extrema importância é a função de Secretário de Estado estadual. Antes das eleições de 2020, uma função do cargo era certificar as eleições sem discussão — contavam-se os votos, o secretário assinava em baixo — mas nesse ano, os republicanos colocaram a possibilidade do Secretário de Estado não certificar. Não foram bem sucedidos, porque os secretários simplesmente não estavam dispostos a cometer uma ilegalidade. Então, nestas eleições, o método republicano é escolher Secretários de Estado “negacionistas”, para garantir a vitória no estado, mesmo contra a vontade dos eleitores. Importante agora, mais importante ainda nas presidenciais de 2024.

Outro cargo em disputa foi o de Governador estadual. Houve eleições em 36 estados, num total de 50. Até agora, tínhamos 28 Estados com governadores republicanos e 22 com democratas. Consoante os estados, o cargo de governador tem muitos poderes, inclusive o de promulgar o equivalente a decretos-lei.

Temos ainda as assembleias estaduais (parlamentos legislativos). O seu controlo determina muitas votações importantes sobre regulação da interrupção da gravidez, ambiente, energia, distribuição dos círculos eleitorais e muito mais.

Uma das questões das eleições dos EUA são os círculos eleitorais, figura jurídica que não existe nas outras democracias e que é possível criar segundo critérios subjectivos, não coincidentes com os círculos administrativos. Isto permite ao partido no poder no Estado inventar áreas de voto que lhesdê maiorias de votantes — é o chamado “gerrymandering”. Permite também, por exemplo, delinear áreas onde as minorias (leia-se: negros, latinos, índios) perdem a maioria; logo, a possibilidade de escolher os seus representantes. Esta macaquice eleitoral é usada pelos dois partidos, diga-se de passagem, e muitos consideram que é uma das principais aberrações democráticas do país.

Outra complicação do sistema é o chamado “voto antecipado”, ou “voto postal”. Em certos estados, os votos antecipados só podem ser contados no dia da eleição, sobrecarregando os contadores e atrasando os resultados. Noutros estados, os votos antecipados só podem ser postados em caixas especiais e as administrações republicanas diminuíram drasticamente o número de caixas nas zonas que sabem ser maioritariamente negras ou com tendência para votar nos democratas. Também há exigências de certificar os eleitores muito complicadas (dois documentos de identidade, prova de residência) que prejudicam os eleitores mais pobres e menos letrados — os negros, resumindo.

Nesta eleição, a importância dos chamados “election deniers” (os que contestam a eleição de 2020 em particular e todas as eleições em geral) tem-se feito sentir a todos os níveis, complicando e atrasando os resultados. Segundo o jornal “The Washington Post”, os “deniers” têm inundado as mesas de voto com pedidos de recontagem de resultados: “Em cerca duas dúzias de estados e uma grande quantidade de condados (freguesias), os encarregados eleitorais têm processado uma inédita quantidade de pedidos de registo nos últimos meses do verão, com a intenção de lhes atrasar o trabalho e enfraquecer um sistema já sobrecarregado.” 

Apesar de todas estas (e outras) manigâncias, os observadores consideram que estas eleições correram melhor do que se esperava para o Presidente Biden. Ele próprio declarou ontem que tinha tido “uma grande vitória”, não só do seu partido, como da democracia em geral. Frank Bruni, um conhecido colunista do “The New York Time”, também concorda com esta opinião.

O principal argumento é que tradicionalmente o presidente em exercício costuma sofrer uma grande derrota nas intercalares, tanto na Câmara dos Representantes como no Senado — desde George W. Bush, em 2002, que o incumbente não sofria uma derrota tão fraca. Por outras palavras, e usando uma comparação feita por centenas de analistas, a “onda vermelha” republicana afinal não passou de uma “ondulação fraquinha”.

Talvez seja verdade, mas isto é o equivalente à conhecida “vitória moral” tão usada no futebol. O facto é que os democratas perderam a Câmara dos Representantes, o que significa que, tal como aconteceu com Obama, Biden fica incapaz de aprovar legislação significativa.

Por outro lado, os republicanos trumpistas e “deniers” não ganharam tantos postos como se esperava. Contudo, ganharam muitos, os suficientes para tornar a próxima eleição de 2024 numa batalha judicial quanto aos resultados. 

Numa análise noutra vertente, verificou-se que as preocupações dos republicanos e dos democratas são muito diferentes. Enquanto os primeiros estão mais atentos às questões económicas — desemprego e nível de salários — os segundos têm referencias sociais — aborto e liberdades civis. É como comparar laranjas com bananas, o que dificulta as propostas dos candidatos, que precisam de agradar sobretudo aos indecisos de ambos os partidos. Toda a gente sabe que são os indecisos que decidem as eleições.

A questão agora é, precisamente, o que se configura para 2024. Não é segredo, nem sequer rumor, que uma vitória de Trump seria uma machada na democracia — os próprios MAGA, isto é, os republicanos trumpistas radicais, não escondem que gostariam de um sistema mais autocrático e que estão dispostos a pegar em armas para defender a “liberdade” — o eufemismo orweliano que usam para o domínio da raça branca cristã contra a “grande substituição” desse segmento étnico/político contra a “invasão” dos imigrantes latinos e a integração dos negros pobres. 

Trump irá candidatar-se, sem dúvida. O seu ego, a longevidade do movimento MAGA, a persistência dos “elections deniers” e o crescimento das milícias armadas, tudo leva a que tente novamente voltar para “aquela maravilhosa Casa Branca”, como acabou de dizer. Trump terá dois concorrentes de peso dentro do partido Republicano: Greg Abbot, o governador do Texas, e, sobretudo, Ron DeSantis, o governador da Florida. São menos mórbidos, mas igualmente egocêntricos — e mais inteligentes e coordenados, o que representa um perigo maior para as instituições democráticas. Ainda é cedo para prever, mas a minha opinião é que, neste momento, há uma ligeira vantagem de Trump sobre DeSantis. Dependerá muito dos biliões que os grandes doadores republicanos investirem num ou no outro. Não dependerá dos problemas legais de Trump, que se irão arrastar indefinidamente.

O grande problema dos democratas é que não têm uma figura carismática para a presidência. Biden, além da enorme falta de popularidade (imerecida), está velho e tropeça nas palavras. Não há outros nomes com simpatia nacional — nem Kamala Harris, a vice, nem Gary Newson, o governador da Califórnia, nem Peter Buttigieg ou Beto O'Rourke, o sempre perdedor nas eleições no Texas. Bernie Sanders também está velho e tem a etiqueta fatal de “socialista”.

Há ainda o factor anti-democrático do Supremo Tribunal de Justiça, que se prepara para dar às legislaturas estaduais — maioritariamente republicanas — o poder de decidir absolutamente sobre os resultados eleitorais federais.

Não é inverosímil dizer que a democracia norte-americana (enfim, essa forma estranha de democracia) por ora está a salvo, mas está longe de ter a sua vigência assegurada. O mundo que se prepare.