1. Ainda não fez um mês mudei-me da cidade para a serra. Estou rodeada de muito menos casas do que árvores centenárias. Mas mesmo em frente, do lado onde o sol nasce, tenho uma palmeira morta de nove ou dez metros. Há-de ter sido gloriosa, agora é um cadáver de triste copa cor-de-rato, despenteada, pendente. Morreu este ano, da praga que já levou tantas palmeiras portuguesas. Os pássaros aproveitam-na para fazer ninho no cocoruto, por vezes voam uns pedaços (não do ninho, da copa). Desde a primeira vez que a vi penso na tempestade, ou na ruína interior, que acabará por deitá-la abaixo. Em que direcção? Para cima da casa junto à qual nasceu? Para a do vizinho do lado? Para a estrada, concorrida, que a separa de mim?
Antes de me mudar, conversei um pouco sobre esta ex-palmeira com a sua proprietária, senhora antiga na região. Ela pensava no risco, claro, mas o que fazer, como cortar aquela gigante? De pé no seu jardim sequíssimo, a minha futura vizinha olhava para o alto.
Pus o assunto na infinita lista das coisas a ver depois da mudança. Ainda não me ocorrera o risco de alguma fagulha naquela copa. Até à última noite de sábado para domingo, quando de repente o país começou a arder.
2. Aliás, nada de repente. Há muitas décadas que para lá caminhamos. E numa noite que devia ser de Outono mas é de Verão, quente demais mesmo para o que aqui era o pino do Verão, achamo-nos completamente sozinhos enquanto tudo arde. Uma noite que vai pelo dia fora, matando dezenas, queimando centenas de milhares de hectares, casas, árvores, terras, animais, formas de vida.
Olhando para o mapa dos quase 600 incêndios desse 15 de Outubro, a mancha verde para onde mudei é das poucas não ameaçadas entre a Galiza e o Tejo. Não vi o fogo cavalgar terra e céus como naquela imagem de Vieira de Leiria em que mal dava para acreditar, que parecia montagem de tanto fim do mundo, tal a escala do fumo sobre o pinhal, a altura do monstro. Não precisei de regar o meu telhado, o meu quintal, duro de seco, à espera das chuvas, como todos aqui. Esse medo não me passou perto. Mas fora daqui ardeu o que também foi parte da minha infância, ou de gente mais ou menos próxima. O luto do que aconteceu, por quem morreu ou perdeu tudo, por tudo o que perdemos, é mesmo de todos. Difícil imaginar alguém de Portugal que não tenha sofrido no domingo. E a perda de alguns é tão grande, somada ao que já vem do Verão, que a reacção do Estado tinha de ser excepcional.
3. Mas, na segunda-feira, o primeiro-ministro apareceu a ler a sua declaração ao país com uma ausência de empatia, e portanto de compreensão, quanto ao que acabara de acontecer. Para além das palavras impessoais, aquém do que seria preciso, nada na postura, na expressão de António Costa tornou aquele discurso um abraço. Tantas pessoas tinham morrido, tantas sem nada, que antes de mais seria preciso reconhecer o abandono em que aquilo acontecera; que se acontecera dessa forma claro que o Estado falhara; e dizer que não podia voltar a acontecer assim. Mesmo com brutais mudanças climáticas, criminosos impunes, oportunistas à coca, terroristas em geral, sabendo como tudo isso pesa e pesará, era preciso jurar que esta mortandade, nesta solidão, nunca mais.
4. Se o primeiro-ministro não soube mostrar às pessoas que elas não estão abandonadas, o secretário de estado da Administração Interna, Jorge Gomes, disse-lhes que de facto estão abandonadas. Em plena tragédia, instou as populações a serem “proactivas”, a não esperarem aviões e bombeiros, como se fosse o momento de um quase raspanete a mortos, feridos, desalojados, gente em estado de choque.
5. O caso da ministra é mais complexo. Vendo o vídeo das declarações que levantaram uma onda de indignados, impressiona como a frase de Constança Urbano de Sousa sobre as férias que não teve se impõe a tudo o resto. Vê-se como aquela pessoa está em busca das palavras num momento de grande tensão, pressionada pela insistente pergunta dos jornalistas sobre se vai demitir-se. Percebe-se o sentido do que ela quer dizer, mas as palavras que saem são desastrosas e esse clamor sobrepõe-se. Uma governante não pode mencionar as férias que não teve quando dezenas de pessas acabam de morrer. Ela será, quero crer, a primeira a concordar em retrospectiva. Saiu-lhe ao lado, como acontece a qualquer pessoa que não seja hábil a expressar-se em público. Acontece que ela é responsável pela administração interna de um país, e falava em circunstâncias trágicas. O que lhe saiu ao lado era incompatível com a dor do momento.
Depois, os surfistas políticos fizeram o que sabem. E o machismo, subtil ou escancarado, não deixou de fazer a sua parte. Ministra emotiva, fraca, cansada, etc, etc, argumentos a caminho da célebre TPM de Trump.
Terça, o presidente falou. A ministra apresentou a carta de demissão. Ficámos a saber que já se quisera demitir depois de Pedrógão, depois no domingo de novo, que foi o primeiro-ministro a insistir para que ficasse. E, quando a sua vontade era sair, continuou sujeita a uma exposição que se transformou em violência pura.
6. Na sua fala, Marcelo, o presidente empático, consolou, abraçou e puxou os cordelinhos, determinando a remodelação. Um momento feito à sua medida.
7. Quanto à surfista-mor Cristas, ex-plantadora de eucaliptos, deixou de novo o PSD a ver navios. E aos que saltam do naufrágio laranja para a prancha dela não parece repugnar uma democrata-cristã capaz de dizer: quando fui ministra não aconteceu uma tragédia destas. Pesem bem a frase.
8. “O homem do futuro vai ser cada vez mais o homem das duas culturas, urbana e rural”, disse Gonçalo Ribeiro Telles numa entrevista já com 14 anos (à “Visão”). A expansão urbana aumenta e não podemos viver sem a agricultura senão morremos à fome.” Releio-o
sobre a replantação deste país, a urgência de variar as espécies e de equilibrar agricultura e floresta, circulação de água e matéria orgânica. “Pode-se optar pelas madeiras de qualidade da cultura mediterrânica como todos os carvalhos, o sobreiro, a azinheira e pinhais criteriosamente distribuídos.” Tal como estão, as florestas de pinheiros e eucaliptos vivem para não ter gente, ardem mesmo que estejam limpas, diz ele. Se houvesse mais gente lá, não ardiam assim.
9. Num dos primeiros dias depois de mudar para a serra, acordei com a casa cheirando a queimado. Saí, dobrando a curva para os campos nas traseiras, atrás do cheiro. Lá ao fundo, junto a uma bandeira de Portugal que talvez fizesse de espantalho, andava um homem a fazer queimadas. Era mais longe, mais agreste do que eu chegaria sem pelo menos um par de botas. Perguntei à vizinhança se costumavam fazer aquilo, um homem disse que sim, que já tinham levado com muito daquele fumo, que até era ilegal, porque as queimadas este ano ainda estavam proibidas. Foi isto pelo romper de Outubro. Liguei para os bombeiros a perguntar o que fazer num caso destes. Que contactasse a GNR, disseram-me, porque a proibição está prevista até 30 de Outubro.
Como trabalhar com aquele homem lá no fundo do campo para o convencer a não fazer queimadas num Outono que já não chega quando chegava? Como dizer-lhe que os céus não estão doidos, que o estrago é mesmo nosso, que estamos sozinhos com ele, e portanto todos juntos nisso?
10. Não estamos sozinhos porque este governo nos abandonou, embora isso também possa ser em parte verdade, muitos governos, ao longo de muito tempo. Estamos sozinhos porque seremos nós e só nós, à falta de extraterrestres ou deuses de varinha mágica, a lutar pela vida na Terra. Sozinhos com o que foi feito desde há gerações, o que é urgente fazer, e sabe-se lá se basta. Nesse sentido, sim, cabe a cada um o que puder.
11. Domingo mesmo, um amigo que trabalha com plantas veio visitar-me, viu a ex-palmeira, sugeriu ver o que o Estado faria. Ontem liguei à Protecção Civil a perguntar, explicaram-me que enviavam um técnico para averiguar a causa da morte e o risco. Caso a palmeira tenha morrido da praga e/ou represente um risco para pessoas e bens, é removida sem custo para o proprietário. Atravessei a rua para levar a informação à casa vizinha. Por coincidência, ou não, eles acabavam de combinar com conhecidos cortar o mal pela raiz.
Foi a primeira vez que tive de vestir a gabardine este ano, porque chovia que se fartava. Que benção.
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