O que está a acontecer na América muda todas as semanas, sempre para pior. Donald Trump saiu da presidência, mas não dos noticiários, e pelas piores razões. Vamos tentar analisar as várias situações e o seu contexto mais alargado.

Primeiro, os números: segundo uma pesquisa do Instituto Gallup, no final de 2021, 47% dos norte-americanos tinham preferência pelos republicanos e 42% pelos democratas. (Nesta pesquisa perguntou-se aos independentes qual a sua preferência entre os dois partidos.) Os números têm variado ligeiramente desde que Trump perdeu as eleições, mas permanece constante uma divisão ao meio entre os eleitores, mesmo com o aparecimento ou a ocorrência de novos factos.

Nesta altura, ser republicano significa ser pró-Trump, mas não totalmente. Há uma corrente de republicanos tradicionais, que se identificam com os valores conservadores do partido, mas que não gostam do ex-presidente. O melhor exemplo será talvez o de Liz Cheney, a congressista do Wyoming que, desde 2017, votou sempre com o partido, mas que se desligou abertamente do trumpismo (e por isso perderá o seu lugar da Câmara dos Representantes nas próximas eleições.)

Depois há os chamados “supremacistas brancos”, as franjas radicais que até há pouco eram mesmo franjas, mas que se têm aproximado dos cristãos evangélicos, dos federalistas (uma corrente que defende a interpretação literal da Constituição de 1787) e de outros grupos, formais e informais, que atingiram um peso que não pode ser desprezado. (Estão todos analisados neste artigo, inclusive as suas origens e evolução histórica. É extenso, mas vale a pena ler.)

Em termos gerais, as suas queixas referem-se aos emigrantes e às minorias étnicas, (negros e latinos em particular) por recearem que estes possam a vir tornar-se mais numerosos do que os brancos de origem europeia – daí o termo “grande substituição”. Também são anti-semitas, mesmo os judeus não sendo facilmente distinguíveis do geral da população branca. Consideram-se perseguidos pelos liberais, pelo aparelho do Estado (“deep state”) e pelo “socialismo” – um termo vago que não tem o mesmo significado do que na Europa, associado difusamente ao comunismo soviético, à colectivização ou nacionalização dos meios de produção e à perda das liberdades individuais, em particular o direito de possuir armas de fogo.

Quantos são? É impossível calcular. Talvez não sejam muitos, mas são muito visíveis, andam fortemente armados e usam equipamento militar misturado com uma confusão de insígnias políticas e religiosas. Estiveram bem à vista no assalto ao Capitólio a 6 de Setembro do ano passado.

No fundo, o que os move é um medo irracional (porque não há nenhuma razão concreta que o sustente) de perderem a posição na escala social a que acham que têm direito.

Não há nenhum país ocidental em que existam milícias armadas equivalentes. 

Donald Trump, como salientou Charles Blow no The New York Times, “sempre usou o medo da perseguição como uma capa de protecção e como a sua arma preferida”. Ou seja, apresenta-se ora vencedor, ora perseguido pelos inimigos ocultos da “americanidade”, sejam eles os democratas ou a burocracia estatal (quando o investiga). As suas atitudes, é claro, não obedecem a nenhuma lógica. Por exemplo, quando neste dia 8 o FBI fez buscas na sua casa da Flórida – voltaremos a este assunto –, o ex-presidente afirmou que está a ser perseguido “pelos democratas do FBI”; ora o FBI é dirigido por Christopher Wray, um republicano de sempre e que foi nomeado para o cargo por Trump, em 2017.

Enquanto candidato e depois como Presidente, Trump sempre apelou para os instintos nacionalistas dos radicais: “A América Primeiro” e “Vamos tornar a América grande, outra vez” (“Make America Great Again” – MAGA). Em 2017, quando se deu o famoso confronto entre o grupo “Black Lives Matter” e os supremacistas brancos “Unite the Right” em Charlottesville, Trump recusou-se a condenar a violência, dizendo que ambos os lados tinham culpa, ainda que um nacionalista de conhecidas tendências neo-nazis tenha atropelado 20 pessoas, uma das quais morreu.

Quando Trump perdeu as eleições de 2020, o Partido Republicano teve de aceitar a derrota, e muitas das suas figuras mais importantes mantiveram a narrativa de que as eleições tinham sido “roubadas” – alguns discretamente, outros abertamente, sempre na fronteira entre o que tinham de reconhecer e a necessidade de agradar ao ex-Presidente.  Os movimentos nacionalistas não precisaram dessa ambiguidade incómoda; para eles, o slogan “Stop the Steal” (“Parem a Roubalheira”) tornou-se predominante, sempre alimentado por Trump, que nunca concedeu a derrota e, pela primeira vez na História dos Estados Unidos, não esteve presente na passagem do cargo para o seu sucessor.

Vários candidatos a Governador e a outros cargos electivos continuam a afirmar até hoje que as eleições foram roubadas e a sua convicção tornou-se um selo de fidelidade a Trump. Neste momento, o partido debate-se com esta situação, que se manterá certamente até às próximas eleições, em 2024, uma vez que Trump já mostrou vontade de concorrer.

Entretanto, as histórias não param. Trump enfrenta neste momento três processos; nenhum deles, mesmo que perca, o impedirá de concorrer, mas é evidente que terão influência no eleitorado. Os republicanos que votarão nele, seja qual for o resultado dos processos, mantêm-se estáveis, um pouco abaixo dos 50%. E, concordam todos os analistas, não é provável que qualquer acontecimento mude essa fidelidade ao narcisismo patológico de Donald Trump. Retirado na sua mansão Mar-a-Lago, na Flórida, não se retirou da vida pública e vai endossando os candidatos que o endossam a ele, e não deixa de aparecer em manifestações que mantenham a sua base energizada.

O processo mais importante é, sem dúvida, a Comissão de Inquérito do Congresso (Senado e Câmara dos Representantes) que investiga o seu envolvimento no ataque ao Capitólio em 6 de Janeiro de 2021, quando os grupos de supremacistas atacaram o edifício com a intenção de impedir a nomeação de Biden. À medida que decorrem as investigações da Comissão, cada vez fica mais evidente que Trump e muitos dos seus assessores tiveram um papel activo nos acontecimentos e que se tratou de uma insurreição. Dos insurrectos propriamente ditos, mais de 800 já foram julgados e condenados.

O outro processo decorre no estado da Georgia, pelo facto de Trump ter telefonado ao responsável local pelas eleições, Brad Raffensperger, a pedir-lhe que lhe “arranjasse” os votos necessários para ganhar no Estado.

O terceiro tem a ver com os negócios da Organização Trump e está a ser investigado há três anos pela procuradora-geral de Nova Iorque, Letitia James. Há indícios de que a estrutura comercial do ex-Presidente cometeu vários tipos de delitos, desde enganar bancos e investidores até falsificar as declarações tributárias. 

Esta semana Trump testemunhou perante James, mas recusou-se a responder a todas as questões, invocando a 5.ª Emenda da Constituição, que permite a um indiciado não fazer declarações que o incriminem.

(É interessante que Trump no passado tenha feito troça dos inquiridos que invocavam a 5.ª Emenda, um sinal de “fraqueza” e “cobardia”.)

Fora estes casos judiciais concretos, há a famosa questão dos arquivos presidenciais. Por lei, todos os documentos, emails, telefonemas, contactos, diários, relatórios – tudo — relacionados a um presidente têm de ser arquivados numa instituição chamada Arquivos Nacionais. A lei também diz que é crime esconder ou destruir esses documentos. Sabe-se que Trump sempre rasgou papéis. Esta semana, a repórter do The New York Times Maggie Haberman tornou públicas fotografias de várias sanitas da Casa Branca entupidas com papéis onde se distingue a caligrafia do ex-presidente dos EUA. Trump negou, claro, chamando Haberman de “verme” e acrescentando que estava a ser vítima “da maior caça às bruxas da História do nosso país”.

Mas a história não fica por aqui. No dia 8, inesperadamente, o FBI, utilizando um mandado judicial, fez buscas na mansão de Trump na Flórida à procura de documentos que ele teria levado ilegalmente de Washington para Mar-a-Lago.

Como se calcula, o FBI não tomaria semelhante medida, nem obteria autorização de um juiz para executá-la, se não tivesse razões concretas. Nunca aconteceu uma situação semelhante e a repercussão, a todos os níveis, foi imediata.

Os políticos republicanos mostraram-se ultrajados com “um acto digno dum país disfuncional de terceiro mundo” (palavras do congressista Ted Cruz). Marjorie Taylor Greene, e Paul Gosar, congressistas, e Laura Ingraham, apresentadora da Fox News, disseram que o FBI devia ser “destruído”. Mitch McConnell, sempre cuidadoso, comentou que o Ministério da Justiça devia dar imediatamente explicações. Acontece que o Ministro da Justiça (Attorney General), Merrick Garland, que já foi procurador e juiz, é um homem cuidadoso e meticuloso, e não tomaria a decisão de enviar o FBI a Mar-a-Lago se não tivesse razões muito concretas. Acontece também que o Ministério da Justiça não tem de declarar publicamente as razões para fazer buscas. Aliás, elas estarão expressas no documento que os agentes entregaram aos advogados de Trump que estavam presentes na mansão.

Todos os prós e contras desta situação estão muito bem explicados no The Economist; não há nenhuma dúvida de que foi uma busca legal e coerente com a investigação sobre o desaparecimento de documentos presidenciais que devem ser preservados e entregues ao Arquivo Nacional. Esta sexta-feira, o Washington Post publicou que os documentos procurados têm a ver com as capacidades militares nucleares dos Estados Unidos, mas, como dissemos, o Ministério da Justiça não tem de dar informações públicas sobre um caso ainda em segredo de justiça.

O caso rebentou como uma bomba nas redes sociais trumpistas, ultra-nacionalistas e supremacistas, onde se fala em guerra civil, preparação de bombas e acções paramilitares musculadas.

Cada vez que um acontecimento relacionado com Trump – sempre negativo – sai a público, aumenta a ferocidade dos seus defensores.

Para completar a semana, há a revelação das relações tumultuosas de Trump, então Presidente, com os militares que o rodeavam, tanto membros do seu gabinete como altas patentes das forças armadas.

Os jornalistas Susan Glasser e Peter Baker têm no prelo um livro que descreve em pormenores excruciantes essas disputas, intitulado “O Divisor; Trump na Casa Branca, 2017-2021”.

Uma pré-publicação na revista “The New Yorker” esclarece finalmente muitos pormenores que não se sabiam, mas que se podiam adivinhar; os vários generais que participaram no círculo íntimo de Trump passaram aqueles cinco anos sem saber se se deviam demitir e abrir a boca, ou aguentar-se no lugar e minimizar os estragos.

O relato que saiu na revista, uma pequeníssima parte das histórias, tem algumas passagens dignas duma tragédia. Por exemplo, Trump disse a certa altura que gostaria de ter generais como os de Hitler, cegamente obedientes. Outro exemplo, o Presidente queria comemorar o dia nacional, 4 de Julho, com uma parada militar “grandiosa” em Washington. E estava sempre a pensar em atacar o Irão, inconsciente das consequências.

Toda esta aparente ambiguidade dos generais se esclarece com a carta de demissão que um deles, o general Miley, escreveu a Trump – mas que não chegou a mandar, aconselhado pelos seus pares a aguentar-se no lugar para diminuir o melhor possível os desastres nacionais e internacionais que o Presidente poderia provocar. 

Diz a carta:

“Lamento informá-lo que vou demitir-me de Chefe do Estado Maior. Agradeço-lhe a honra de me ter nomeado para o posto mais alto das Forças Armadas. Mas os acontecimentos das últimas semanas levaram-me a pensar profundamente e concluir que não posso apoiar e executar fielmente as suas ordens na minha qualidade de Chefe do Estado Maior. Acredito que está a fazer um estrago muito grande e irreparável ao meu país. Acredito que o senhor fez uma tentativa premeditada para politizar as Forças Armadas. Pensei que o podia impedir, mas concluí que não posso, e preciso de me afastar e deixar espaço para que alguém o faça.

Em segundo lugar, o senhor está a usar os militares para criar medo na cabeça das pessoas – e nós estamos aqui para proteger o povo norte-americano. O povo tem confiança nos seus militares para o proteger contra todos os inimigos, externos ou internos, e é isso que os militares sempre farão. Não voltaremos as costas ao povo norte-americano. 

Em terceiro lugar, fiz o meu juramento de fidelidade à Constituição dos Estados Unidos e faz parte dessa Constituição a ideia de que todos os homens e mulheres foram criados iguais. Todos os homens e mulheres são iguais, sejam quem forem, sejam brancos ou negros, asiáticos, ou indianos, seja qual for a cor da sua pele, sejam homossexuais, heterossexuais ou qualquer coisa entre os dois. Não interessa se são católicos, protestantes, muçulmanos, judeus ou descrentes. Nada disso interessa. Também não interessa o país de onde vieram, qual é o nome de família – o que interessa é que somos americanos. Somos, todos, americanos. Sob as cores encarnada, branca e azul – as cores pelas quais os meus pais lutaram na Segunda Guerra Mundial – há um significado que é igual para o mundo inteiro. Para mim é evidente que o senhor não pensa nessas cores do mesmo modo que eu penso. Para mim é evidente que o senhor não tem consideração por esses valores e pela causa que sirvo.

Finalmente, acredito profundamente que o senhor está a destruir a ordem internacional e a causar danos significativos à imagem do nosso país no mundo, um país que lutou com tanto esforço graças à Maior Geração presente em 1945. Entre 1914 e 1945, 150 milhões de pessoas foram chacinadas pela guerra. Foram chacinadas por causa de tiranias e ditaduras. Essa geração, como todas as outras, lutou contra essas forças, lutou contra o fascismo e o nazismo, lutou contra o extremismo. Para mim é evidente, agora, que o senhor não compreende essa ordem mundial. Não compreende as razões dessas guerras. Na realidade, o senhor defende muitos dos princípios contra os quais lutamos. E eu não posso participar nisso. Portanto é com profunda mágoa que apresento esta carta de demissão”.

Que carta impressionante, não é ?

E terminamos com o que escreveu o jornalista Tim Alberta na revista The Atlantic:

“Este país está a entrar numa escala de violência que não se via desde a Guerra Cilvil. Isto é evidente para quem passa um bom tempo a investigar os espaços físicos e virtuais da direita americana. Vá a uma feira de armas. Visite uma igreja ultra-conservadora. Assista a um comício de Trump. Qualquer que seja o local, as profecias do fim do mundo são omnipresentes – e assustadoras. Onde quer que fosse e ouvisse enunciar cenários hipotéticos de conflito iminente, o argumento baseia-se sempre no descarado abuso do poder, tipicamente os Democratas a armar as agências do Estado contra os seus rivais políticos. Saí sempre dessas experiências a pensar: Se a América é um barril de pólvora, então basta um excesso do governo, real ou imaginário, para acender o rastilho.”

Será um exagero? Bem, veremos se Trump concorrer em 2024, e veremos, sobretudo, se ganhar.

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